O positivismo, que apregoa a objetividade da realidade, saiu de moda faz tempo, mas deixou um grude que não larga. Não há como negar sua importância no avanço científico, industrial e tecnológico dos últimos séculos. Mas na literatura a pegada é diferente. São tantos conflitos internos e externos ao homem e à linguagem que não dá para medir segundo uma escala. Por que? Leia A igreja do Diabo, de Machado de Assis.
Não é tão difícil compreender que a vida é muito mais do que vemos e tocamos. Entender os traços que compõem o ser humano e a sociedade, as vicissitudes de comportamento, o contraste entre complexidade e previsibilidade, e aliar isso a uma linguagem original é um ofício para poucos. Algo que já deixou de existir no plano físico pode ainda existir?
O diplomata e contista estreante Krishna Monteiro, no livro O que não existe mais, nos coloca num campanário cheio de janelas para mostrar que sim. Cada janela dá em um universo diferente. Um filho de um pai que copia cada traço do genitor, um encontro com Guimarães Rosa, um galo de briga que enxerga toda a sua vida no último combate, um gato doméstico que presencia um suicídio, o neto de um avô veterano de guerra. Cada conto é uma demonstração contumaz de que existe tanto além do que podemos perceber no plano positivo que emociona. Essa é a verdadeira realidade.
O que não existe mais
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Ficha técnica
Autor: Krishna Monteiro
Editora: Alaúde Editorial [Tordesilhas]
Formato: 14 x 19 cm
Páginas: 112
ISBN: 978-85-8419-027-0
Lançamento: fevereiro/2015
Krishna demonstra uma preferência pela narração em primeira pessoa. Quando não, migra para o narrador intruso. Tenta ser a voz que sai da cabeça do personagem e fala com o leitor, às vezes indiretamente. Nota-se que não é um trabalho simples ou amador: os sete contos demoraram três anos para saírem do prelo.
O conto de abertura, que cedeu o título ao livro, é narrado por um filho que teve uma relação conflituosa com o pai. A linguagem utilizada tem traços evidentes de Borges e Cortázar. A imagem onde o pai – que não existe mais, porém existe – é representado por um corredor meio iluminado e cheio de portas, é um nocaute literário. É uma influência do realismo mágico, a melhor maneira de transmitir a influência da figura paterna no herdeiro. A leitura do conto não pode se emendar com a do próximo, dada a necessidade de reflexão.
No segundo conto, a obra de Guimarães Rosa é encarnada na imagem do próprio. Cenas, personagens, tudo inspira metalinguagem. Leitores fiéis de Sagarana certamente vão se emocionar. O capítulo seguinte, espetacular e cheio de ação, traz um galo de briga em seu último combate, alternando cenas de violência com flashes de sua vida, desde o rompimento da casca até o desnascimento. De todos, apenas O sudário parece ter sido enxertado no livro, tanto pelo estilo quanto pela temática – o que não diminui o conto em si. Delego ao leitor o prazer de desvendar os demais.
Cada frase em O que não existe mais é um caminhão carregado de subjetividades. As palavras não são encadeadas para informar ou descrever, mas para manipular a linguagem e conduzir o leitor pela narrativa. Nada está ali por acaso ou capricho. Mesmo quando um determinado conto tende a ser palavroso demais, não há excesso. Há figuras e metáforas em profusão. A qualidade narrativa também pode ser atestada pela facilidade e fluidez com que o autor se desloca pelo tempo da narrativa. Em Monte Castelo, o narrador ora direciona a fala para o avô, ora para o leitor. O manuseio dos tempos verbais ("és tu... eras tu...") em O que não existe mais é trabalho de artífice, irretocável.
Não é um livro difícil de ser lido; uma sala silenciosa ou um banco de ônibus, o ambiente não importa. Entretanto, o preparo e a sensibilidade do leitor dirão até que camada de cada conto é possível chegar. Os textos conversam entre si e com outros. O que não existe mais merece ser lido duas ou três vezes.