Sábios elogios: considerações sobre a Loucura


Não é fácil comentar um livro que sequer compreendi por completo, mesmo tendo lido por duas vezes. Esse dever se torna ainda mais difícil e imbuído de grande responsabilidade quando se trata de uma obra-prima escrita por um dos maiores eruditos do pós-medieval. O livro em questão é o Elogio da Loucura (original: Encomium, id est, Stultiae Laus), escrito pelo holandês Erasmo de Rotterdam. Ciente do mister ao qual eu mesmo me prontifiquei, farei algumas considerações sobre o livro.


Erasmo nasceu na cidade de Rotterdam, na Holanda, no ano de 1465, conturbada era de transição entre a idade média e a recente modernidade, período em que o renascimento florescia com força na europa, sobretudo na Itália. Ficou órfão muito cedoe foi enviado pelo seu tutor para um convento, onde se formou padre e teve contato com os insignes escritores e oradores da antigüidade e da idade média, como Homero, Demóstenes, Tomás de Aquino, Cícero, dentre outros. Se tornou um homem bastante instruído, e a partir de um olhar crítico sobre a sociedade européia da época, escreveu o Elogio da Loucura. Apesar de ser muito antigo, o livro é de uma atualidade impressionante, o que prova que modernidade não traz, necessariamente, evolução.


A narração é em primeira pessoa. O eu-lírico do escritor é a própria Loucura, que se define como uma deusa: "Nasci de Plutão [...] pai dos deuses e dos homens". A escolha de Erasmo se deu justamente em detrimento dos objetivos. Uma personagem pitoresca é ideal para se retratar uma sociedade pitoresca, corrupta e lasciva. Isso fica bem claro quando a Loucura diz "Ireis, pois, ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Sólon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura". O autor, como já pôde ser notado, faz inúmeras alusões a escritos dos antigos, personagens das mitologias greco-roma e textos bíblicos (o comentário da loucura sobre a bíblia é interessantíssimo, vou dar uma pincelada logo mais), o que torna necessário o uso das notas de rodapé (por parte do tradutor), ou a leitura se tornaria ainda mais densa.

A Loucura, em seu monólogo, versa sobre as diversas instâncias da sociedade, falando da devoção implícita que lhe é prestada por todos, inclusive e principalmente pelos sábios (Erasmo tem um respaldo bíblico muito firme: uma passagem do livro de romanos pode corroborar: "inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos" (ROM 1:22). O ponto mais crítico encontra-se no que tange aos eclesiásticos; Erasmo faz uma crítica muito forte, sem poupar nem o próprio papa. Sobre os bispos: "[...] Deixam o cuidado do rebanho ao próprio Cristo ou aos chamados irmãos, ou ainda a seus vigários. Esquecem que seu designativo de bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. Essas qualidades lhes servem para pôr a mão no dinheiro, para isso eles sabem abrir os olhos". Sobre os cardeais: "Se os cardeais refletissem sobre tudo isso, longe de ambicionar o cargo que ocupam, eles o abandonariam sem pesar e prefeririam levar uma vida de trabalho e de devotamento que foi aquela dos antigos apóstolos". Sobre os papas: "Quantas vantagens haveriam de perder se a sabedoria pudesse um dia entrar neles! [...] Diriam adeus a riquezas imensas, honras, poder, patrimônio, vitórias, cavalos, mulas, guardas e tantos prazeres".


Os leitores me perdoem a brevidade, mas várias leituras são possíveis em cima do livro Elogio da Loucura, se eu fosse observar cada uma, não haveria ciberespaço que comportasse tanta coisa, logo precisarei da ajuda de vocês para conhecer a visão de cada um e melhorar esse comentário.


Ah, claro... como prometi. A Loucura, a partir do capítulo LXIII faz uma interpretação muito interessantre da bíblia. Desta vez, ela assume um tom mais sério. Faz uma distinção entre bíblia, espiritualidade e religião que muitos pastores e padres (e demais lideranças) ainda hoje desconhecem. Primeiro ela enumera os livros, capítulos e versículos onde ela julga 'se encontrar' (ver capítulo LXIII), depois fundamenta o seu discurso na própria Palavra de uma forma tão precisa, elegante e inteligente que passamos a ter uma visão diferente das coisas espirituais.


Não estou criticando religião alguma, se quiserem refutar o que foi escrito aqui, leiam o livro. Apenas fiz uma leitura que me ocorreu ao ler essa obra-prima da literatura e que, com certeza, não poderia ser esquecida no Resenhas £ Críticas. Interajam, participem, vamos crescer juntos intelectualmente... podem extravasar comentários na seção destinada a isso, ou podem me mandar textos por e-mail para serem publicados.