[Resenha] Nas Montanhas da Loucura


Pegue um pouco de Edgar Allan Poe, misture com uma pitada de Verne, jogue no caldeirão da cultura pulp da primeira metade do século 20 e deixe ao acaso. Essa parece ser a fórmula de Nas montanhas da loucura, livro escrito pelo norte-americano Howard Phillips Lovecraft, mais conhecido por inventar a besta cósmica Cthulhu.

O livro foi escrito em 1931 e segue uma fórmula familiar para quem já leu outros contos do autor. A narrativa é feita em primeira pessoa sobre acontecimentos passados; não há diálogos, prevalecendo o discurso indireto livre. Os parágrafos são longos e descritivos, um estilo que requer uma leitura mais devagar e atenta – clara contraposição à tendência de escrever parágrafos curtos, já comum na época, principalmente em contos publicados em periódicos.

Na história, o narrador William Dyer, que pode ser classificado como autodiegético, escreve um extenso relato de uma missão acadêmica e multidisciplinar à Antártida – continente cujo mistério e isolamento despertava tanta curiosidade quanto o planeta Marte a exerce sobre as pessoas hoje. Entretanto, o relatório tem como único propósito desestimular futuras incursões na amplitude alva do Pólo Sul para preservar sepultos seres primordiais que poderiam trazer destruição à humanidade.

A descrição de uma sociedade oriunda do Espaço Sideral que firmou uma civilização absurdamente avançada em períodos longínquos ocupa boa parte do miolo do livro – são os trechos que despertam maior curiosidade.
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Há uma semelhança com o estilo de ficção científica dominado pelo francês Jules Verne – tendência que Lovecraft passou a perseguir desde A Cor que Caiu do Espaço –, porém só até certo ponto. Enquanto o francês buscava a exatidão científica em cada detalhe da jornada, por mais que parecesse inverossímil, Lovecraft usa os dados científicos apenas para dar lastro ao escrito. Essa é a principal característica de seu estilo, que alguns chamam de Fantasia Cósmica: lançar mão da imaginação para besuntar os espaços deixados pelos achados da ciência, algo que ele chamava de "complementaridade". De preferência da maneira mais absurda, com as criaturas mais diabólicas e bizarras possíveis, mas sem descartar o sentido, o sentimento de que aquilo poderia ser real.

Não há preocupação em aprofundar o lado emocional dos personagens, uma estratégia eficiente para evitar que o leitor se perca em detalhes pouco úteis. Basta saber quem era geólogo, quem era biólogo, quem eram os técnicos e pilotos e quem eram os estudantes

Apesar de o texto ter sido escrito no intervalo de um mês – entre fevereiro e março de 1931 –, as oscilações de ritmo e clímax foram bem arquitetadas. Na edição mais recente da Editora Hedra, é possível vislumbrar, no último apêndice, um pouco do processo criativo de Lovecraft: o esqueleto da narrativa ocupa apenas seis páginas e é composto por marcações que já indicam todo o rumo da história. É método de trabalho a ser copiado.

Não há preocupação em aprofundar o lado emocional dos personagens, uma estratégia eficiente para evitar que o leitor se perca em detalhes pouco úteis. Basta saber quem era geólogo, quem era biólogo, quem eram os técnicos e pilotos e quem eram os estudantes. O temperamento e a subjetividade de cada um não interessam tanto. Coerente com um relato que visa alertar a sociedade para horrores inomináveis que devem permanecer em eterna hibernação.

É notável o abuso de adjetivos utilizados pelo autor como forma de prender a atenção ou de transmitir algum sentimento de horror ou medo ao leitor. Na verdade é uma tática desesperada – o excesso de adjetivos raramente é visto como algo benéfico em contos e romances. Entretanto é compatível com a proposta – o narrador realmente está desesperado e não conhece palavras em quaisquer idiomas capazes de traduzir o seu pavor – e com o estilo das revistas pulp, popularesco e pouco refinado.

A intertextualidade é característica natural de Nas montanhas da loucura. Para leitores pouco familiarizados com outros títulos do autor, deparar-se com termos como Necronomicon, shoggoth e Yog-Sothoth vai ser uma experiência esquisita. Essas referências podem ser encontradas em outros contos anteriores. Também são feitas ligações com A Narrativa de Arthur Gordon Pym, único romance de Edgar Allan Poe, e obras de arte, sobretudo de Nikolai Rerikh, cujas gravuras inspiraram o livro, de acordo com o próprio Lovecraft.

O leito desse rio desemboca no absurdo, no inefável, na insanidade, em um caos primordial confuso e frustrante, que sequer pode ser chamado de desfecho. Ele quer acabar com a sua paz. Esse é o fim.

A escrita em primeira pessoa é característica do norte-americano, basta ler os contos Dagon, A Música de Erich Zann e outros para notar a similaridade. Apesar disso, os personagens não têm características distintivas; na verdade parece que todos são o próprio Lovecraft e que cada conto é um capítulo de sua autobiografia. Não há interesse do autor por sinuosidades de personalidade, caprichos, peculiaridades de humor, nada que faça do personagem-narrador uma construção singular do escritor.

Outro ponto em comum: não há finais felizes. Isso não significa que o desfecho de Nas Montanhas da Loucura é uma tragédia pessoal que se concretiza com uma morte triste. O leito desse rio desemboca no absurdo, no inefável, na insanidade, em um caos primordial confuso e frustrante, que sequer pode ser chamado de desfecho. Ele quer acabar com a sua paz. Esse é o fim.

H.P. Lovecraft é creditado como o criador de um gênero literário bem peculiar, e merece ser lembrado – e lido – pela originalidade e autenticidade de suas obras. Porém o leitor deve ter consciência de que não está lendo um Flaubert ou Machado de Assis do século 20. Afirmo-o menos por questões de juízo de valor sobre a qualidade intrínseca da obra do que pelas especificidades do estilo.