O mito do herói é um arquétipo humano. Desde os primeiros registros, sabe-se que são contadas histórias onde um ser próximo à perfeição é capaz de reunir inúmeros atributos morais, espirituais e/ou físicos que o permitem se destacar entre os seus congêneres normais. E esse mito ainda existe na atualidade: na literatura, narrativa televisiva e até em campanhas publicitárias. A história do heroi sempre atrai simpatia e atenção das pessoas, ainda que elas acreditem que é impossível existir tal entidade. Uma pessoa que consiga construir uma narrativa em torno de si onde ela aparece como o heroi, conquista corações e mentes – posso evocar os estadistas Getúlio Vargas e Abraham Lincoln como exemplo, ou os fictícios Super-Homem e Capitão América.
Bilbo Bolseiro não é esse heroi. Embora ele seja o protagonista do famoso O Hobbit, escrito pelo genial J.R.R. Tolkien, e de certa forma, revele muito mais do seu caráter e força do que ele julgava ser dono, é um sujeito que aprecia como ninguém uma vida mansa, comer toucinho com ovos pela manhã para depois dar baforadas com seu cachimbo, e passar os dias de forma irritantemente pacata. Toda a aventura que ele viveu por influência de um mago incoveniente foi uma experiência excelente para ser lembrada e revisitada em sua posteridade – mas, enquanto durou, foi repleta de resmungos, lamentações e saudosismos de sua vida nula.
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Tolkien
Porém, antes de falar sobre o livro, é preciso explicar um pouco sobre John Ronald Reuel Tolkien (1892 - 1973) e seu fantástico mundo – que, na verdade, é o nosso próprio mundo muitas eras atrás. O escritor, de nacionalidade britânica, mas nascido na [atual] África do Sul, é tido como um linguista nato. Quando criança, gostava de inventar idiomas; sua mãe lhe contava histórias em grego e latim, e logo se interessou por outras, como o finlandês e galês – que basearam a criação de línguas élficas. Em 1915, licenciou-se em literatura pela Universidade de Oxford, mas em seguida foi convocado para servir o Império Britânico na Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918). Sobreviveu a uma das mais violentas carnificinas do conflito, em uma batalha mal-sucedida onde mais de 500 mil soldados pereceram (inspiração para a Batalha dos Cinco Exércitos?).A despeito de ser voltada para crianças, o simbolismo em O Hobbit comporta uma vasta riqueza de elementos que podem ser destrinchados à luz da psicanálise e da filosofia.
Nesse período, teve ideias. Depois de voltar à Inglaterra, começou a rascunhar a sua obra mais ambiciosa – embora uma das menos populares: O Silmarillion, onde ele narra o mito da criação do mundo e das coisas. Católico, ele apoia sua alegoria no que ele chamava do Grande Mito (o Evangelho) que, platônica e agostinianamente falando, seria a imagem primordial de todos os outros mitos não-cristãos. Dentro desse mundo fantástico, acontecem as suas aventuras, incluindo a magnum opus O Senhor dos Anéis e seu prelúdio, O Hobbit.
Esta foi a primeira de suas obras a ser publicada, em 1937, e se tornou um best-seller de cara. Na verdade, O Hobbit é uma história que Tolkien costumava narrar para os seus filhos quando crianças – daí o teor pueril, os animais falantes e a linguagem simpĺes com que ele se dirige ao leitor. A despeito de ser voltada para crianças, o simbolismo em O Hobbit comporta uma vasta riqueza de elementos que podem ser destrinchados à luz da psicanálise e da filosofia – e, quando interpretados, revelam um poderoso tesouro para ser guardado por toda a vida.
Aviso: a partir daqui, o texto contém spoilers.
Lá e de volta outra vez
Em O Hobbit, Bilbo Bolseiro (Baggins, no original) é um ser pertencente a uma raça que não passa de 1,5 metro de altura, caracteriza-se por ser avessa a aventuras que ultrapassem os limites de seu bucólico lar e vivem faustamente em suntuosas tocas:"Numa toca no chão vivia um hobbit. Não uma toca desagradável, suja e úmida, cheia de restos de minhocas e com cheiro de lodo; tampouco uma toca seca, vazia e arenosa, sem nada em que sentar ou o que comer: era a toca de um hobbit, e isso quer dizer conforto".
A aventura se situa na chamada "Terceira era" no universo de Tolkien. Em um dia ordinário, Bilbo recebe a visita do sábio mago Gandalf, que aparece com propostas indecorosas para um Bolseiro: uma aventura. É claro que o hobbit não estava nem um pouco inclinado a se arriscar longe da Colina, mesmo tendo o sangue quente dos Tûk. "Nós somos gente simples e acomodada, e eu não gosto de aventuras", respondeu a Gandalf, que [aparentemente] caminhava de forma errante à procura de parceiros para a jornada.
Ignorando a negativa do anfitrião, o mago convida 13 anões falastrões para uma reunião na casa de Bilbo na noite seguinte. Na ocasião, além do festival de glutonaria típica da raça, se passa um dos momentos mais poéticos [não o único] do livro: a descrição da aventura através de canções cantadas com a grave e profunda voz dos anões.
"Far over the misty mountains coldA essa altura, Bilbo está confuso em relação à presença dos anões, de Gandalf e não sabe o que fazer com o papel que lhe é oferecido na aventura, o de um ladrão (no original, burglar: um tipo de ladrão que pratica arrombamentos e furtos). Apesar da recusa anterior, Gandalf força o interesse de Bilbo na aventura por acreditar em seu potencial. Bilbo teria de sair dos limites da Colina e cruzar a fronteira do Ermo, para além das terras civilizadas, e ajudar os anões a recuperarem o seu tesouro e seu lar, ambos tirados pelo violento e terrível dragão Smaug. Relutante, ele aceita o dever e parte pela manhã algum tempo após seus companheiros – que desde a noite anterior duvidam da sua bravura. Anões são fortes e guerreiros, mas não são movidos por heroísmo. São gananciosos e mensuram meticulosamente qualquer coisa pelo seu peso em ouro.
To dungeons deep and caverns old
We must away ere break of day
To find our long forgotten gold."
Arquétipos e realidade
O Hobbit é tido pela maior parte dos seus leitores como uma boa introdução de O Senhor dos Anéis. Superficialmente, a história explica muito antes da aventura de verdade, com herois que exterminam orcs impiedosamente com espadas, flechas e machados, e guerras épicas entre representantes do bem e do mal. A trilogia sim, é história para gente grande. Mas menosprezar os elementos simbólicos em O Hobbit é renegar a polissemia e a variedade de significados que um livro pode ter. Um ensaio publicado originalmente em 1975 por Dorothy Matthews¹ aborda o lado psicanalítico de O Hobbit, à luz das teorias de Sigmund Freud e de Carl Gustav Jung.A psicanálise é uma abordagem controversa. Estudiosos contemporâneos alegam que a teoria é determinista e ultrapassada, sobretudo quando confrontada com teorias modernas do século 20, como a psicologia fenomenológica e existencial. Entretanto, ela ainda fornece instrumentos que ajudam a compreender determinados fenômenos para além do materialismo, e nesse ponto reside o mérito de Dorothy Matthews. A estudiosa é precisa na associação dos símbolos com os elementos do livro, e amarra bem a construção do discurso a partir desse ponto de vista.
O que para muitos parece apenas mais uma aventura fantástica, pode ser analisado, na verdade, como uma iniciação à maturidade. Apesar de Bilbo ser já um senhor de meia idade quando a oportunidade se lhe apresenta, seu comportamento ainda é de uma criança mal-educada: sem responsabilidades, sem autoconhecimento, com poucos deveres e muitos direitos, glutão e egoísta. A oferta de Gandalf é uma ameaça ao seu lado Bolseiro.
Gandalf aqui representa não um velho feiticeiro com poucas opções (como ele mesmo quer deixar a entender), mas um estrategista e um mentor. Segundo Matthews, ele corresponde ao arquétipo do "Velho Sábio", que instrui e inspira os mais novos. O seu papel de estrategista fica evidente logo nos primeiros capitulos, quando ele prepara um ardil para convencer a besta-homem Beorn a abrigar a Companhia em seu salão. Beorn, por sua vez, pode ser encarado como a personificação de um homem comum em contraste com o seu subconsciente – ora amigável, ora transmutado em um urso gigante, uma visão concreta de tudo o que compõe a subconsciência humana.
A aventura completa, em si, é uma jornada arquetípica para enfrentar problemas, obstáculos e tragédias. Orcs e aranhas gigantes são bem reais, não apenas fantasias, se materializarmos comportamentos nocivos arraigados em nossa mente. E Gandalf é o arquiteto que vai unir interesses e necessidades para conduzir 14 indivíduos em suas jornadas particulares. Notem que, no livro, o objetivo da aventura não é manifesto em nenhum momento. Todos sabem que têm que chegar à Montanha Solitária, mas não têm ideia do que fazer lá para expulsar um dragão que dizimou hordas de anões – uma vez na montanha, o ladrão recuperou uma taça em meio a miríades de tesouros e cantou vitória... até perceber que não tinha vencido nada. A Pedra Arken é um detalhe que aparece nos últimos capítulos da narrativa para cumprir o seu papel na jornada de Bilbo.
Smaug, por sua vez, simboliza o poder maligno e destrutivo da ambição. Ele é velho, experiente, insaciável e inteligente – além de extremamente poderoso. Tradicionalmente, matadores de dragões são herois de bravura e força incontestáveis. Na saga dos Nibelungos, Siegfried se torna invulnerável a qualquer coisa depois que mata um dragão guardião de tesouros e se banha em seu sangue – exceto por um único ponto fraco que é a causa da sua morte, característica manjada de herois das canções, como Aquiles. E Smaug, como Siegfried e Aquiles, tinha uma fraqueza que foi explorada por seu algoz. E esse algoz não é o nosso Bolseiro.
O verdadeiro ponto fraco dos herois é que, em algum momento, tendem a se tornarem arrogantes, autossuficientes, solitários e violentos. Em pouco tempo são moralmente vencidos por um inimigo com o qual nunca se preocuparam: o próprio caráter. É a síntese que Star Wars nos traz, quando o poderoso Anakin caminha a passos largos para o “lado obscuro da Força” – no mundo físico, ninguém podia vencê-lo, mas seu caráter fraco foi o alvo do inimigo para derrubá-lo e convertê-lo. Herois são imbatíveis em força, reflexos e habilidade; mas muitas vezes escolhem, inadvertidamente, o caminho fácil.
Por isso Bilbo não é o nosso heroi. E não faria sentido sê-lo, apesar de demonstrar calma e inteligência contra Gollum, e força contra as aranhas. Não apenas por não reunir as características de um guerreiro, mas por ter outras muito mais úteis que são desprezadas por herois, como a habilidade de barganha e negociação aliada à fortaleza do seu caráter – essa última parece ser um “poder especial” dos hobbits, ou ao menos dos Bolseiros; é isso que os torna resistentes ao efeito corruptivo do Um Anel, que o próprio Gandalf evita tocar. No episódio envolvendo a Pedra Arken, Bilbo demonstrou equilíbrio entre a traição, ganância e a paz. Conseguiu estrategicamente sustentar interesses e adiar um combate sangrento, mantendo a tensão entre os adversários por vários dias. Quando o verdadeiro inimigo – hordas de goblins montados em wargs – chegou a Valle, foi possível a Gandalf unir anões, elfos e humanos contra o antagonista comum no episódio conhecido como a Batalha dos Cinco Exércitos.
Mais uma vez, na batalha, a presença de Bilbo foi inútil. Por sorte, escapou vivo graças à invisibilidade do anel – sorte que não foi compartilhada por Thorin que, nos últimos suspiros, reconheceu o tremendo valor do hobbit na jornada. Apesar de ser o protagonista, Bilbo Bolseiro não é um heroi arquetípico. Entretanto, a sua conduta demonstra que o heroísmo não precisa ser um atributo de todos, e que é possível mudar o curso da história e da própria vida com suas próprias características.
O Hobbit é uma jornada, mas não apenas mais uma aventura em um mundo de fantasia e entretenimento (como se vê tanto atualmente). É a jornada de cada pessoa, cada indivíduo que não é um heroi e, por ser menosprezado, encastela-se em suas próprias convicções e negligencia seu poder. Isso me lembra uma citação de A Invenção de Hugo Cabret:
“Gosto de imaginar que o mundo é uma grande máquina. Você sabe, máquinas nunca têm partes sobressalentes. Elas têm o número e tipo exato das partes que precisam. Então imagino que se o mundo é uma grande máquina, eu também estou nele por algum motivo. E isso significa que você também está aqui por alguma razão”.Some a essa análise ao fato de que O Hobbit é uma obra infanto-juvenil. Crianças hoje estudam em período integral no velho modelo cartesiano, que divide tudo em disciplinas, mas têm pouco ou nenhum contato com histórias. Estou certo de que uma criança ou jovem que lê obras como O Hobbit tem muito mais chances de desenvolver um caráter íntegro em sua vida adulta. Por que essa é a aventura pela qual todos vamos passar, prontos ou não.
Fontes:
¹ MATTHEWS, Dorothy. The Psychological Journey of Bilbo Baggins. In: LOBDELL, Jared (Org.). A Tolkien Compass. Illinois: Open Court, 2003, p. 27-39.
² TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2013.