Editora Unesp relança obra premiada sobre tráfico de escravos no Brasil


Até os anos 80, pouco se sabia sobre a mecânica do tráfico de escravos que colocou o Brasil no posto de maior importador das Américas. O trabalho que apresentou maior relevância para a revisão dos fatos foi o livro Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, do historiador Manolo Florentino. Em 1993, a obra ganhou o prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa Peter Gifford e na última semana uma nova edição foi lançada pela Editora Unesp.

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Editora Unesp [versão física]

No livro, o autor desvenda a estrutura política, social e econômica que, tanto no Brasil quanto na África, possibilitou ao país tornar-se o maior importador de escravos das Américas entre os séculos 16 e 19, período em que recebeu nada menos de 10 milhões de negros. Montados nessa baba, os mercadores de escravos lucraram horrores – tanto que chegaram a ocupar posições de influência política.

O mérito da obra de Florentino é apontar, com evidências, um conjunto de engrenagens que operava nos dois continentes segundo a lei mais primitiva do mercado: oferta e demanda.

"O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes"

Florentino, que hoje é diretor-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, questiona postulados clássicos acerca da migração compulsória que durou três séculos apoiado em documentos como listagens de navios negreiros, inventários post-mortem e registros imobiliários. A conclusão é a que conhecemos hoje: uma demanda crescente de mão de obra e comerciantes dispostos a atendê-la. Só que os produtos eram pessoas.

O Brasil recebeu tantos escravos que a segunda região das Américas em volume de tráfico, as colônias britânicas do Caribe, receberam menos da metade. Já na África, o processo era marcado por duas dimensões: social – a cristalização da hierarquia e das relações de poder – e econômica. Esta última relacionava-se à forma pela qual se dava a produção do cativo (a violência), que possibilitava o baixo custo do fluxo de mão de obra.

“O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes”, escreve Florentino.

Leia abaixo um trecho liberado pela Editora Unesp.

“Viu-se ter sido a guerra o principal mecanismo de transformação do homem em cativo. Ela redundava na expansão territorial dos vencedores, o que, nas condições específicas da África pré-colonial, significava a incorporação de povos tributários. O grande peso dos instrumentos bélicos entre os bens que compunham o escambo costeiro, por seu turno, incrementava ainda mais as guerras e, por conseguinte, a capacidade de produção de escravos. Configurava-se um mecanismo retroalimentador, onde o ritmo da rotação era caudatário dos níveis da demanda americana. Para além dessa causa causans, a viabilização de uma produção maciça e continuamente renovável de escravos estava organicamente vinculada não somente à existência de relações desiguais de poder entre os próprios africanos, mas sobretudo ao fortalecimento do Estado, único meio produtor de cativos em grande escala. Não causa surpresa, portanto, que durante o auge do tráfico a maior parte das sociedades africanas sem Estado estivessem situadas fora dos principais eixos do comércio negreiro (Gray, 1977, p.7; Polanyi, 1968). Eis aqui o primeiro papel estrutural do tráfico atlântico na África: à aquisição de bens no litoral correspondia o fortalecimento político e econômico dos grupos dominantes nativos. Acentuava-se a diferenciação social entre as classes e frações de classes, entre as etnias, Estados e mesmo no interior da comunidade doméstica.”