Os valiosos ensinamentos de Julio Cortázar aos escritores


O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) foi um dos principais nomes de uma escola literária genuinamente latino-americana, o realismo fantástico. Mais do que o conteúdo, ele se tornou famoso por escrever contos curtos com maestria, situando-se na história ao lado de nomes como Edgar Allan Poe e Jorge Luís Borges. Em um artigo dirigido aos escritores cubanos à época da revolução que alçou Castro ao poder, ele revela tudo o que é necessário para se tornar um bom contista, fustiga as narrativas pretensamente populares e despidas de estilo literário, e motiva os autores da ilha caribenha — tudo com imagens vívidas, evidentemente, e sem clichês de autoajuda. Os ensinamentos, entretanto, valem para os escritores de todas as eras e países.

O texto foi traduzido por mim e está disponível integralmente abaixo. Entreguei-me ao trabalho de destacar os trechos que requerem atenção especial, para que a preguiça não prive ninguém de ler essa preciosidade.

Esse e outros ensaios estão presentes no livro Valise de Cronópio. É fundamental para aspirantes a escritores e críticos.


Alguns aspectos do conto

(Originalmente publicado nos dez anos da revista “Casa de las Américas”, nº 60, julio 1970, La Habana)

Encontro-me hoje diante dos senhores em uma situação bastante paradoxal. Um contista argentino se dispõe a trocar ideias acerca do conto sem que seus ouvintes e interlocutores, salvo algumas exceções, conheçam nada de sua obra. O asilo cultural que segue prejudicando nossos países, somado ao injusto cerceamento da comunicação a que Cuba se vê submetida na atualidade, determinam que meus livros, que já são poucos, não cheguem mais que por exceção às mãos de leitores tão dispostos e tão entusiasmados quanto vocês. A desvantagem dessa situação é tanto que vocês não têm oportunidade de julgar meus contos, de modo que me sinto um pouco como um fantasma que vem a falar sem esta relativa tranquilidade que sempre dá ao sabermo-nos precedidos pela tarefa cumprida ao longo dos anos. Essa coisa de sentir-me como um fantasma deve ser já perceptível em mim, porque há alguns dias uma senhora argentina me garantiu, no hotel Riviera, que eu não era Julio Cortázar, e diante de minha surpresa, alegou que o autêntico Julio Cortázar é um senhor de cabelos brancos, muito amigo de um parente seu, e que nunca havia se mudado de Buenos Aires. Como faz doze anos que moro em Paris, compreendam vocês que minha qualidade espectral se intensificou notavelmente depois desta revelação. Se subitamente eu desaparecer na metade de uma frase, não me surpreenderei muito; e, no mínimo, todos saímos ganhando.

Diz-se que o desejo mais ardente de um fantasma é recuperar ao menos um pouco da sua corporeidade, algo tangível que o devolva por um momento à sua vida de carne e osso. Para lograr um pouco de tangibilidade diante de vocês, vou dizer em poucas palavras qual é a direção e o sentido de meus contos. Não o faço por mero prazer informativo, porque nenhuma resenha teórica pode substituir a obra em si; minhas razões são mais importantes. Posto que vou me ocupar de alguns aspectos do conto como gênero literário, e é possível que algumas de minhas ideias surpreendam ou choquem os leitores, parece-me de uma elementar honradez definir o tipo de narração que me interessa, indicando minha maneira especial de entender o mundo. Quase todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de melhor nome, e se opõem a esse falso realismo que insiste em acreditar que todas as coisas podem descrever e explicar a si mesmas como se dava por assentado no positivismo filosófico e científico do século 18, isto é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, princípios, relações de causa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem cartografadas. No meu caso, a suspeita de outra ordem mais secreta e menos comunicável, e o fecundo descobrimento de Alfred Jarry, para quem o verdadeiro estudo da realidade não residia nas leis, mas nas exceções a essas leis, têm sido alguns dos princípios orientadores da minha busca pessoal de uma literatura à margem de todo realismo demasiadamente ingênuo. Por isso, se nas ideias que seguem os senhores encontram uma predileção por tudo o que no conto é excepcional, quer se trate dos temas ou das formas expressivas, creio que esta apresentação da minha própria maneira de entender o mundo explicará minha posição e meu enfoque sobre o problema. No último extremo dizer-se-á que falei do conto tal como o pratico. E sem embargo, creio que não seja assim. Tenho a certeza de que existem certas constantes, certos valores que se aplicam a todos os contos, fantásticos ou realistas, dramáticos ou humorísticos. E penso que talvez seja possível mostrar aqui esses elementos invariáveis que dão a um bom conto sua atmosfera peculiar e sua qualidade de obra de arte.

A oportunidade de trocar ideias acerca do conto me interessa por diversas razões. Vivo em um país — França — onde este gênero tem pouca vigência, ainda que, nos últimos anos, nota-se, entre escritores e leitores, um interesse crescente por essa forma de expressão. De qualquer maneira, enquanto os críticos seguem acumulando teorias e mantendo polêmicas inflamadas acerca do romance, quase ninguém se interessa pela problemática do conto. Viver como contista em um país onde esta forma de expressão é um produto quase exótico, obriga forçosamente a buscar em outras literaturas o alimento que ali é falto. Pouco a pouco, em textos originais ou mediante traduções, vamos acumulando quase rancorosamente uma enorme quantidade de contos do passado e do presente, e chega o dia em que pude fazer uma avaliação, tentar uma aproximação de valor a esse gênero de definição um tanto difícil, tão esquivo em seus múltiplos e antagônicos aspectos, e em última instância tão secreto e ensimesmado, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário.

Mas além desse alto no caminho que todo escritor deve fazer em algum momento da sua carreira, falar do conto tem um interesse especial para nós, posto que quase todos os países americanos de língua espanhola estão dando ao conto uma importância excepcional, que jamais havia tido em outros países latinos, como França ou Espanha. Entre nós, como é natural nas literaturas jovens, a criação espontânea precede quase sempre o exame crítico, e está bem que assim seja. Nada pode pretender que os contos só devam ser escritos depois de conhecidas as suas leis. Em primeiro lugar, não existem tais leis. No máximo cabe falar de pontos de vista, de certas constantes que dão uma estrutura a esse gênero, tão pouco classificável; em segundo lugar os teóricos e os críticos não têm porque serem os próprios contistas, e é natural que só entrem em cena quando exista um acervo, um ajuntamento de literatura que permita indagar e esclarecer seu desenvolvimento e suas qualidades. Na América, tanto em Cuba quanto no México, Chile ou Argentina, uma grande quantidade de contistas trabalha desde os começos do século, sem se conhecerem, descobrindo-se às vezes de maneira quase póstuma. Frente a esse panorama sem coerência suficiente, no qual poucos conhecem a fundo o trabalho dos demais, creio que é útil falar do conto por cima das particularidades nacionais e internacionais, porque é um gênero que entre nós tem uma importância e uma vitalidade que crescem dia após dia. Futuramente serão feitas as antologias definitivas — como o fazem os países anglo-saxões, por exemplo — e se saberá até onde temos sido capazes de chegar. No momento não me parece inútil falar do conto em abstrato, como gênero literário. Se tivermos uma ideia convincente desta expressão literária, ela poderá contribuir para estabelecer uma escala de valores para esta antologia ideal que está para ser feita. Há muita confusão, muitos mal-entendidos neste terreno. Enquanto os contistas levam adiante sua tarefa, já é tempo de falar dessa tarefa em si mesma, à margem das pessoas e nacionalidades. É preciso chegar a ter uma ideia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil à medida em que as ideias tendem ao abstrato, a desvitalizar seu conteúdo, enquanto, por sua vez, a vida rechaça angustiada esse laço que a conceptualização lhe quer atirar para fixá-la e categorizá-la. Mas se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última instância, move-se nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o conto em si, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade em uma permanência. Apenas com imagens pode-se transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também porque há tão poucos contos verdadeiramente grandes.

[em um] combate travado entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.

Para entender o caráter peculiar do conto costuma-se compará-lo ao romance, gênero muito mais popular e sobre o qual abundam as preceptísticas. Assinala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no papel, e portanto no tempo da leitura, sem outro limite que o esgotamento da matéria romanceada; por sua parte, o conto parte da noção de limite e, em primeiro lugar, de limite físico, ao ponto que na França, quando um conto excede as vinte páginas, passa a ser denominado nouvelle, gênero situado entre o conto e o romance propriamente dito. Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar analogicamente com o cinema e a fotografia, à medida em que uma película é, em princípio, uma "ordem aberta", romanesca, enquanto uma fotografia bem sucedida pressupõe uma apertada limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo abarcado pela câmera e pela forma em que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação. Não sei se vocês já ouviram um fotógrafo profissional falar de sua arte; eu sempre me surpreendi que ele pudesse fazê-lo como um contista em muitos aspectos. Fotógrafos da qualidade de um Cartier-Bresson ou de um Brasai definem sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da realidade, fixando-o em determinados limites, mas de maneira tal que esse recorte atue com uma explosão que abre de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abarcado pela câmera. Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme se logra mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não exclui, supostamente, uma síntese que dê o "clímax" da obra, em uma fotografia ou em um conto de grande qualidade se procede inversamente, é dizer que o fotógrafo ou o contista se veem na iminência de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não somente valham por si mesmos, mas que também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projeta a inteligência e a sensibilidade para algo que vá muito mais além da anedota visual ou literária contidas na foto ou no conto. Um escritor argentino, muito amigo do boxe, dizia-me que nesse combate travado entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute. É certo, à medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases. Não se deve entender isso demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e muitos de seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na verdade, estão minando as resistências mais sólidas do adversário. Tomem vocês qualquer grande conto que prefiram, e analisem sua primeira página. Surpreender-me-ia se encontrassem elementos gratuitos, meramente decorativos. O contista sabe que não pode proceder cumulativamente, que não tem por aliado o tempo; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, seja acima ou abaixo do espaço literário. E isto, que assim expressado parece uma metáfora, expressa, sem embargo, o essencial do método. O tempo do conto e o espaço do conto têm de estar como condenados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal para provocar essa "abertura" à qual me referia antes. Basta perguntar-se por que um determinado conto é ruim. Não é ruim pelo tema, porque na literatura não existem temas bons ou ruins, há somente um bom ou mau tratamento do tema. Tampouco é ruim porque os personagens carecem de interesse, visto que até uma pedra é interessante quando dela se ocupam um Henry James ou um Franz Kafka. Um conto é ruim quando é escrito sem essa tensão que deve manifestar-se desde as primeiras palavras ou as primeiras cenas. E assim podemos avançar, já que as noções de significação, de intensidade e de tensão nos permitirão, como se verá, enfocarmos melhor a estrutura do conto.

Um contista é um homem que, prontamente, rodeado da imensa algaravia do mundo, comprometido em maior ou menor grau com a realidade histórica que o contém, escolhe um determinado tema e faz, com ele, um conto.

Dizíamos que o contista trabalha com um material que qualificamos como significativo. O elemento significativo do conto pareceria residir principalmente em seu tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou fictício que tenha essa misteriosa propriedade de irradiar algo mais além de si mesmo, ao ponto que um episódio doméstico vulgar, como ocorre em tantos relatos admiráveis de uma Katherine Mansfield ou um Sherwood Anderson, se converta no resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo cáustico de uma ordem social ou histórica. Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vá muito mais além da pequena e às vezes miserável anedota contada. Penso, por exemplo, no tema da maioria dos admiráveis relatos de Antón Chéjov. O que existe ali que não seja tristemente cotidiano, medíocre, muitas vezes conformista ou inutilmente rebelde? O que se conta nesses relatos é quase o que, quando crianças nas aborrecidas tertúlias que devíamos compartilhar com os mais velhos, escutávamos nossas avós ou tias contarem; a pequena, insignificante crônica familiar de ambições frustradas, de modestos dramas locais, de angústias à medida de uma sala, de um piano, de um chá com doces. E, contudo, os contos de Katherine Mansfield, de Chéjov, são significativos, algo estala neles enquanto os lemos e nos propõem uma espécie de ruptura do cotidiano que vá muito além da anedota contada. Os senhores já terão percebido que essa significação misteriosa não reside somente no tema do conto, porque na verdade a maioria dos contos ruins que todos temos lido contêm episódios similares aos que tratam os autores supracitados. A ideia de significação não pode ter sentido se não a relacionamos com as de intensidade e de tensão, que já não se referem somente ao tema, mas ao tratamento literário desse tema, a técnica empregada para desenvolver o tema. É aqui onde, bruscamente, se produz a diferença entre o bom e o mau contista. Por isso havemos de nos deter com todo cuidado possível nesta encruzilhada, para tratar de entender um pouco mais essa estranha forma de vida que é um conto bem sucedido, e ver por que está vivo, enquanto outros, que aparentemente se parecem, não são mais do que tinta sobre papel, alimento para o ouvido.

Vejamos a coisa pelo ângulo do contista e, neste caso, obrigatoriamente, a partir da minha própria versão do assunto. Um contista é um homem que, prontamente, rodeado da imensa algaravia do mundo, comprometido em maior ou menor grau com a realidade histórica que o contém, escolhe um determinado tema e faz, com ele, um conto. Essa escolha do tema não é tão simples. Às vezes o contista escolhe, outras vezes sente como se o tema se lhe impôs irresistivelmente, empurrou-o a escrevê-lo. No meu caso, a grande maioria dos meus contos foram escritos — como dizê-lo — à margem da minha vontade, por cima ou por baixo da minha consciência racional, como se eu não fosse mais do que um médium pelo qual passava e se manifestava uma força alheia. Mas isso, que pode depender do temperamento de cada um, não altera o essencial, que é: em um momento dado há o tema, seja inventado ou escolhido voluntariamente, ou estranhamente imposto a partir de um plano onde nada é definível. Há o tema, repito, e esse tema deverá tornar-se um conto. Antes disso, o que podemos dizer do tema em si? Por que esse tema e não outro? Que razões movem consciente ou inconscientemente o contista a escolher um determinado tema?

Pensem nos contos que não puderam esquecer e verão que todos têm a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta do que sua narrativa.

Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto sempre é excepcional, mas não quero dizer com isso que um tema deva ser extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Pelo contrário, pode tratar-se de uma narrativa perfeitamente trivial e cotidiana. O excepcional reside em uma qualidade parecida com a do ímã; um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor e, mais tarde, no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que flutuam virtualmente em sua memória ou sua sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário do qual muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, revela-nos sua existência. Ou então, para sermos mais modestos e atuais, um bom tema tem algo de sistema atômico, de núcleo em torno do qual giram os elétrons; e tudo isso, ao fim e a cabo, não é como uma proposição de vida, uma dinâmica que nos insta a sair de nós mesmos e a entrar em um sistema de relações mais complexo e charmosos? Muitas vezes me perguntaram qual é a virtude de certos contos inesquecíveis. No momento os lemos junto com muitos outros que inclusive poderiam ser dos mesmos autores. E eis que os anos passaram, e temos vivido e esquecido tanto. Mas esses pequenos, insignificantes contos, esses grãos de areia no imenso mar da literatura, seguem aí, latejando em nós. Não é verdade que cada um tem sua coleção de contos? Eu tenho a minha, e poderia dar alguns nomes. Tenho William Wilson, de Edgar A. Poe; tenho Bola de sebo, de Guy de Maupassant. Os pequenos planetas giram e giram: aí está Uma lembrança de Natal, de Truman Capote; Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges; Um sonho realizado, de Juan Carlos Onetti; A morte de Iván Ilich, de Tolstoi; Cincuenta de los grandes, de Hemingway; Os sonhadores, de Izak Dinesen, e assim poderia seguir e seguir... Os senhores já terão advertido que nem todos esses contos são obrigatoriamente antológicos. Por que perduram na memória? Pensem nos contos que não puderam esquecer e verão que todos têm a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta do que sua narrativa, e por isso exerceram influência em nós com uma força que a modéstia de seu conteúdo e a brevidade do texto jamais levantariam suspeitas. E esse homem que, em um determinado momento, elege um tema e escreve com ele um conto, será um grande contista se a sua escolha contém — às vezes sem que ele o saiba conscientemente — essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito à essência da condição humana. Todo conto perdurável é como a semente onde está dormindo a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, dará sua sombra em nossa memória.

Entretanto é melhor esclarecer melhor essa noção de temas significativos. Um mesmo tema pode ser profundamente significativo para um escritor e pouco importante para outros; um mesmo tema despertará enormes ressonâncias em um leitor e deixará outro indiferente. Em suma, pode-se dizer que não existem temas absolutamente significativos ou absolutamente insignificantes. O que existe é uma aliança misteriosa e complexa entre determinado escritor e determinado tema em um dado momento, assim como a mesma aliança poderá dar-se logo entre certos contos e certos leitores. Por isso, quando dizemos que um tema é significativo, como no caso dos contos de Chejov, essa significação se vê determinada em certa medida por algo que está fora do tema em si, por algo que está antes e depois do tema. O que está antes é o escritor, com sua carga de valores humanos e literários, com sua vontade de fazer uma obra que tenha um sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, a forma em que o contista, frente ao seu tema, ataca-o e situa-o verbal e estilisticamente, estrutura-o em forma de conto, e o projeta em último termo em direção a algo que excede o conto em si. Aqui parece-me oportuno mencionar um fato que me ocorre com frequência, e que outros contistas amigos conhecem tão bem quanto eu. É habitual que no curso de uma conversa, alguém conte um episódio divertido, comovente ou estranho, e que, dirigindo-se logo ao contista presente diga: "Aí tens um tema formidável para um conto; te dou de presente". Fui presenteado dessa maneira com um monte de temas, e sempre contestei amavelmente: "muito obrigado", e jamais escrevi um conto com nenhum deles. Todavia, certa vez uma amiga me contou distraidamente as aventuras de uma criada sua em Paris. Enquanto escutava seu relato, senti que podia chegar a ser um conto. Para ela, esses episódios não eram mais que narrativas curiosas; para mim, bruscamente, foram investidos de um sentido que ia muito além de seu conteúdo simples e até vulgar. Por isso, toda vez que me perguntam: como distinguir entre um tema insignificante — por mais divertido ou emocionante que possa ser — e outro significativo? Respondo que o escritor é o primeiro a sofrer esse efeito indefinível, porém avassalador, de certos temas, e que precisamente por isso é um escritor. Assim como para Marcel Proust o sabor de uma madeleine molhada no chá abria bruscamente um imenso leque de recordações aparentemente esquecidas, de maneira análoga o escritor reage ante certos temas da mesma forma em que seu conto, mais tarde, fará reagir o leitor. Todo conto está, assim, predeterminado pela aura, pela fascinação irresistível que o tema cria em seu criador.

O conto tem que nascer ponte, tem que nascer passagem, tem que dar o salto que projete a significação inicial, descoberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos vigilante e muitas vezes até indiferente que se chama leitor.

Chegamos assim ao fim desta primeira etapa do nascimento de um conto, e tocamos no umbral de sua criação propriamente dita. Eis aí o contista, que escolheu um tema valendo-se dessas sutis antenas que lhe permitem reconhecer os elementos que logo haverão de converter-se em obra de arte. O contista está cara a cara com seu tema, frente a esse embrião que já é vida, mas não adquiriu, todavia, sua forma definitiva. para ele, esse tema tem sentido, tem significação. Mas se tudo se reduzisse a isso, de pouco serviria; agora, como último termo do processo, como juiz implacável, está esperando: o leitor, o elo final do processo criador, o cumprimento ou o fracasso do ciclo. E é então que o conto tem que nascer ponte, tem que nascer passagem, tem que dar o salto que projete a significação inicial, descoberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos vigilante e muitas vezes até indiferente que se chama leitor. Os contistas inexperientes costumam cair na ilusão de imaginar que lhes basta escrever simples e claramente um tema que o comoveu, para comover, por sua vez, os leitores. Incorrem na ingenuidade daquele que acha belíssimo seu filho e dá por certo que todos os demais o veem igualmente belo. Com o tempo, com os fracassos, o contista capaz de superar essa primeira etapa ingênua, aprende que na literatura não bastam as boas intenções. Descobre que para voltar a criar no leitor essa comoção que o levou a escrever o conto, é necessário um ofício de escritor, e que esse ofício consiste, entre muitas outras coisas, em lograr esse clima próprio de todo grande conto, que obriga a seguir lendo, que agarra a atenção, que isola o leitor de tudo o que o cerca para depois, terminado o conto, voltar a conectá-lo com suas circunstâncias de uma maneira nova, enriquecida, mais funda e mais bela. E a única forma em que pode conseguir-se esse sequestro momentâneo do leitor é mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão, um estilo em que os elementos formais e expressivos se ajustem, sem a menor concessão, à índole do tema, lhe deem sua forma visual e auditiva mais penetrante e original, tornem-no único, inesquecível, fixem-no para sempre em seu tempo, em seu ambiente e em seu sentido mais primordial. O que chamo de intensidade em um conto consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermediárias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e até exige. Ninguém entre os senhores deverá ter se esquecido de O barril de amontillado, de Edgar A. Poe. O extraordinário deste conto é a brusca independência de toda descrição de ambiente. A partir da terceira ou quarta frase estamos no coração do drama, assistindo ao cumprimento implacável de uma vingança. Os assassinos, de Hemingway, é outro exemplo de intensidade obtida mediante a eliminação de todo o que não convirja essencialmente ao drama. Mas pensemos agora nos contos de Joseph Conrad, de D. H. Lawrence, de Kafka. Neles, com modalidades típicas de cada um, a intensidade é de outra ordem, e eu prefiro dar o nome de tensão. É uma tensão que se exerce na maneira com que o autor nos cerca lentamente à medida em que a história é contada. Todavia estamos muito longe de saber o que vai acontecer no conto, e contudo não podemos esquivarmo-nos da sua atmosfera. No caso de O barril de amontillado e de Os assassinos, os atos despojados de toda preparação saltam sobre nós e nos amarram; em troca, em um relato demorado e caudaloso de Henry James — A lição do mestre, por exemplo — se sente de imediato que os atos em si carecem de importância, que tudo está nas forças que os desencadernaram, na malha sutil que os precedeu e os acompanha. Mas tanto a intensidade da ação como a tensão interna do relato são o produto do que antes chamei de ofício do escritor, e é aqui onde vamos chegando perto do final deste passeio pelo conto. No meu país, e agora em Cuba, pude ler contos dos autores mais variados: maduros ou jovens, da cidade ou do campo, entregues à literatura por razões estéticas ou por imperativos sociais do momento, comprometidos ou não comprometidos. Pois bem, e ainda que soe como truísmo, tanto na Argentina como aqui, os bons contos estão sendo escritos por aqueles que dominam o ofício no sentido já indicado. Um exemplo argentino pode aclarar melhor. Em nossas províncias centrais e nortenhas existe uma vasta tradição de contos orais, que os gaúchos transmitem entre si à noite, em torno da fogueira, que os pais seguem contando aos seus filhos, e que de repente passam pela pena de um escritor regionalista e, na esmagadora maioria dos casos, se convertem em péssimos contos. O que aconteceu? Os relados em si são saborosos, traduzem e resumem a experiência, o sentido do humor e o fatalismo do homem do campo; alguns inclusive se elevam a uma dimensão trágica ou poética. Quando alguém os escuta da boca de um velho gaúcho, entre um mate e outro, sente como uma anulação do tempo, e pensa que os aedos gregos contavam assim as façanhas de Aquiles para a maravilha de pastores e viajantes. Mas nesse momento, quando deveria surgir um Homero que faria uma Ilíada ou uma Odisseia dessa soma de tradições orais, em meu país surge um senhor para quem a cultura das cidades é um sinal de decadência, para quem os contistas que todos amamos são estetas que escreveram para o mero deleite de classes sociais liquidadas, e esse senhor entende, em troca, que para escrever um conto a única coisa que faz falta é registrar por escrito uma narrativa tradicional, conservando, tanto quanto possível, o tom falado, o sotaque campesino, as incorreções gramaticais, isso que chamam de cor local. Não sei se essa maneira de escrever contos populares se cultiva em Cuba; oxalá que não, porque no meu país não deu mais do que indigestos volumes que não interessam nem aos homens do campo, que preferem seguir escutando os contos entre dois tragos, nem aos leitores da cidade, que podem estar em franca decadência, mas não deixam de ler bem lidos os clássicos do gênero. Em troca — e me refiro também à Argentina — tivemos escritores como Roberto J. Payró, Ricardo Güiraldes, Horacio Quiroga e Benito Lynch que, partindo também de temas muitas vezes tradicionais, escutados da boca de velhos gaúchos, como um Don Segundo Sombra, souberam aproveitar o potencial esse material e transformá-lo em obra de arte. Mas Quiroga, Güiraldes e Lynch conheciam a fundo o ofício de escritor, isto é, só aceitavam temas significativos, enriquecedores, assim como Homero teve de preterir montes de episódios bélicos e mágicos para não deixar mais do que aquilo que chegou até nós graças à sua enorme força mítica, à sua ressonância de arquétipos mentais, de hormônios psíquicos, como chamava Ortega y Gasset os mitos. Quiroga, Güiraldes e Lynch eram escritores de dimensão universal, sem preconceitos localistas, étnicos ou populistas; por isso, além de escolher cuidadosamente os temas de seus relatos, submetiam-nos a uma forma literária, a única capaz de transmitir ao leitor todos os seus valores, todo o seu fermento, toda a sua projeção em profundidade e altura. Escreviam intensamente. Não há outra maneira para um conto ser eficaz, faça alvo no leitor e se crave em sua memória.

Não tem sentido falar de temas populares a seco. Os contos sobre temas populares só serão bons se se ajustam, como qualquer outro conto, a essa exigente e difícil mecânica interna que temos tratado de mostrar na primeira parte desta conversa.

O exemplo dado pode ser de interesse para Cuba. É evidente que as possibilidades que a Revolução oferece a um contista são quase infinitas. A cidade, o campo, a luta, o trabalho, os tipos psicológicos distintos, os conflitos de ideologia e de caráter; e todo isso como exacerbado pelo desejo que se vê nos senhores de atuar, de se expressarem, de se comunicarem como nunca haviam podido fazê-lo antes. Mas como traduzir tudo isso em grandes contos, em contos que cheguem ao leitor com a força e a eficácia necessárias? É aqui onde eu gostaria de aplicar concretamente o que tenho dito em um terreno mais abstrato. O entusiasmo e a boa vontade não bastam por si sós, como tampouco basta o ofício de escritor por si só para escrever os contos que fixem literariamente (isto é, na admiração coletiva, na memória de um povo) a grandeza desta Revolução em marcha. Aqui, mais que em qualquer outra parte, se requer hoje uma fusão total destas duas forças, a do homem plenamente comprometido com sua realidade nacional e mundial, e a do escritor lucidamente seguro de seu ofício. Nesse sentido não há engano possível. Por mais veterano, por mais perito que seja um contista, se lhe é falta uma motivação cativante, se seus contos não nascem de uma profunda vivência, sua obra não irá além do mero exercício estético. Mas o contrário será ainda pior, porque de nada vale o fervor, a vontade de comunicar uma mensagem, quando faltam os instrumentos expressivos, estilísticos, que tornam possível essa comunicação. Neste momento estamos tocando o ponto crucial da questão. Creio, e digo-o depois de considerar longamente todos os elementos que entram em jogo, que escrever para uma revolução, quer escrever dentro de uma revolução, que escrever revolucionariamente, não significa, como creem muitos, escrever obrigatoriamente acerca da revolução em si. Por minha parte, creio que o escritor revolucionário é aquele em que se fundem indissoluvelmente a consciência de seu livre compromisso individual e coletivo, com essa outra soberana liberdade cultural que confere o pleno domínio de seu ofício. Se esse escritor, responsável e lúcido, decide escrever literatura fantástica, ou psicológica, ou volta ao passado, seu ato é um ato de liberdade dentro da revolução, e por isso é também um ato revolucionário ainda que seus contos não se ocupem das formas individuais ou coletivas adotadas pela Revolução. Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem literatura com pedagogia, literatura com educação, literatura com doutrinamento ideológico, um escritor revolucionário tem todo o direito de dirigir-se a um leitor muito mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do que imaginam os escritores e críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o único mundo existente, que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas. Repitamos, aplicando-a ao que nos rodeia em Cuba, a admirável frase de Hamlet a Horácio: "Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que supõe tua filosofia...". E pensemos que um escritor não é julgado somente pelo tema de seus contos ou seus romances, mas por sua presença viva no seio da coletividade, pelo ato de que o compromisso total de sua pessoa é uma garantia irrefutável da verdade e da necessidade de sua obra, por mais alheia que esta possa parecer às circunstâncias do momento. Esta obra não é alheia à revolução por não ser acessível a todo o mundo. Ao contrário, prova que existe um vasto setor de leitores em potencial que, em um certo sentido, estão muito mais separados que o escritor das metas finais da revolução, dessas metas de cultura, de liberdade, de pleno gozo da condição humana que os cubanos se fixaram para admiração de todos aqueles que os amam e os compreendem. Quanto mais alto apontem os escritores que nasceram para isso, mais altas serão as metas finais do povo a que pertencem. Cuidado com a demagogia fácil de exigir uma literatura acessível a todo o mundo! Muitos daqueles que a apoiam não têm outra razão para fazê-lo além da sua evidente incapacidade para compreender uma literatura de maior alcance. Pedem clamorosamente temas populares, sem suspeitar que muitas vezes o leitor, por mais simplório que seja, distinguirá instintivamente um conto popular mal escrito de um conto mais difícil e complexo, mas que o obrigará a sair por um momento do seu pequeno mundo circundante e lhe mostrará outra coisa, seja o que for, mas outra coisa, algo diferente. Não tem sentido falar de temas populares a seco. Os contos sobre temas populares só serão bons se se ajustam, como qualquer outro conto, a essa exigente e difícil mecânica interna que temos tratado de mostrar na primeira parte desta conversa. Há anos tive a prova desta afirmação na Argentina, em uma roda de homens do campo, onde assistíamos a uns tantos escritores. Alguém leu um conto baseado em um episódio de nossa guerra de independência, escrito com uma deliberada simplicidade para colocá-lo, como dizia seu autor, "ao nível do campesino". O relato foi escutado cortesmente, mas era fácil notar que não havia tocado fundo. Logo um de nós leu A pata do macaco, o justamente famoso conto de W. W. Jacobs. O interesse, a emoção, o espanto, e finalmente o entusiasmo foram extraordinários. Lembro que passamos o resto da noite falando de feitiçaria, de bruxos, de vinganças diabólicas. E estou seguro de que o conto de Jacobs segue vivo na memória desses gaúchos analfabetos, enquanto o conto supostamente popular, fabricado para eles, com seu vocabulário, suas aparentes possibilidades intelectuais e seus interesses patrióticos, hão de estar tão esquecidos como o escritor que o fabricou. Eu pude ver a emoção que uma representação de Hamlet provoca entre a gente simples, uma obra difícil e sutil, se existem tais obras, e que continua sendo tema de estudos eruditos e infinitas controvérsias. É certo que essa gente não pode compreender muitas coisas que apaixonam os especialistas em teatro elisabetano. Mas o que importa? Só sua emoção importa, sua maravilha e seu transporte frente à tragédia do jovem príncipe dinamarquês. O que prova que Shakespeare escrevia verdadeiramente para o povo, à medida em que seu tema era profundamente significativo para qualquer um — em diferentes planos, sim, porém alcançando um pouco a cada um — e que o tratamento teatral desse tema tinha a mesma intensidade própria dos grandes escritores, e graças à qual se quebram as barreiras intelectuais aparentemente mais rígidas, e os homens de reconhecem e se confraternizam em um plano que está mais além ou mais para cá da cultura. É claro, seria ingênuo crer que toda grande obra pude ser compreendida e admirada pelas pessoas mais simples; não é assim e não pode sê-lo. Mas a admiração que provocam as tragédias gregas ou as de Shakespeare, o interesse apaixonado que despertam muitos contos e romances nada simples ou acessíveis, deveria fazer suspeitar aos partidários da chamada "arte popular" que sua noção de povo é parcial, injusta e, em último termo, perigosa. Não de faz nenhum favor ao povo quando se lhe propõe uma literatura que possa assimilar sem esforço, passivamente, como quem vai ao cinema ver filmes de cowboys. O que deve ser feito é educá-lo, e isso é uma primeira etapa pedagógica, não literária. para mim tem sido uma experiência reconfortante ver como em Cuba os escritores que mais admiro participam da Revolução dando o melhor de si mesmos, sem cercear nenhuma parte de suas capacidades em aras de uma suposta arte popular que não será útil a ninguém. Um dia Cuba contará com um acervo de contos e romances que conterá, transmutada ao plano estético, eternizada na dimensão intemporal da arte, sua gesta revolucionária de hoje. Mas essas obras não haverão sido escritas por obrigação, por mandado da hora. Seus temas nascerão no momento certo, quando o escritor sentir que deve plasmá-los em contos, romances, peças de teatro ou poemas. Seus temas conterão uma mensagem autêntica e profunda, porque não haverão sido escolhidos por um imperativo de caráter didático ou proselitista, senão por uma irresistível força que se imporá ao autor, e que este, apelando a todos os recursos que sua arte e sua técnica, sem sacrificar nada a ninguém, haverá de transmitir ao leitor como se transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue, de mão a mão, de homem a homem.