Rubem Fonseca é cru, brutal e nada romântico. Como ex-policial, ele entende alguma coisa do mundo do crime, e escreveu sobre isso. Feliz ano novo, livro de contos que leva o nome da primeira narrativa, é tão sangrento que foi retirado de circulação depois de seu lançamento, em 1975. Os milicos não achavam de bom tom falar sobre a realidade: foi nessa época que começaram a surgir as organizações criminosas.
Porém não é só a violência, digamos, catártica presente na história que impressiona. Vamos considerar apenas o primeiro conto: na primeira "camada" de leitura, bandidos abrem buracos no peito de cidadãos "inocentes" com uma doze de cano serrado em plena virada de ano. Será que esse comportamento selvagem seria explicado apenas pela pobreza que tem como consequência a criminalidade?
A resposta está no primeiro parágrafo.
"Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque."
O melhor do gênero conto é que nada é escrito à toa ou para preencher linhas. Rubem Fonseca, com sua estética, demonstra isso muito bem. O desejo no personagem – que também é o narrador – é despertado pelo "ver". No parágrafo seguinte, uma contradição brutal acerta o rosto do leitor.
"Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros."
De cara pode-se dizer que é uma demonstração clara do mecanismo de violência simbólica. A televisão era o meio de comunicação mais popular – ou pelo menos o que exercia maior influência – na época. Era o pesadelo frankfurtiano. Enquanto a televisão dita padrões de comportamento e sexualidade, conforme narrado, as classes sociais lá de baixo percebem que não têm direito à inserção no mundo maravilhoso do consumo. Não bastassem as agruras da miséria, a mídia atira ao rosto tudo aquilo a que os pobres nunca terão direito.
"Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido."
O conceito de violência simbólica foi proposto pelo pensador francês Pierre Bourdieu e explica o processo pelo qual a classe dominante impõe sua cultura aos de baixo. Essa imposição é arbitrária, não se assenta em leis ditas naturais. E um exemplo dessa imposição é a cultura do consumo disseminada pela mídia televisiva. Rubem Fonseca percebeu isso e soube criar uma narrativa crua, seca e banalizadora. E irônica, absolutamente irônica.
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A reação do dominado resulta em violência física – porém repare que não é estabelecida uma relação de causalidade: o leitor cria repulsa por todos os que estão ali, os ricaços que festejam e os bandidos assassinos. O diálogo social é estabelecido através da violência – simbólica de um lado e física do outro.
O estilo narrativo de Fonseca evidencia essa banalidade: não existem marcações de diálogos, a história é contada em primeira pessoa e evidencia uma realidade ignorada, bem como as percepções do personagem sobre os mundos – o ideal e o real. Ora, no Brasil de 1975 não existia "tanta gente rica"; a pobreza grassava entre a população, porém a violência simbólica torna-se tão cruel que aliena até o pobre da pobreza. Rubem Fonseca sabia disso. O personagem, não.
O desejo inicial converte-se em asco, repúdio. É como se o personagem principal entendesse, de alguma forma, o que a riqueza representa para ele. Não é o mundo ideal, e sim um mundo que o violenta. Quando invade uma mansão com dois comparsas, percebe que não deseja nada daquilo, o que fica patente no ato de defecar em lençóis de cetim e recusar-se a estuprar as vítimas.
A única conclusão que se pode tirar é: Feliz ano novo incomoda. Ainda hoje.