Os relatórios de Graciliano Ramos, ou o político que nós queremos



Nem todos sabem, mas o autor do celebrado Vidas Secas também foi político certa feita. Graciliano Ramos, nascido em Quebrangulo, administrou durante alguns anos a cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas – hoje a quarta maior cidade do estado. Ele já era escritor, publicara várias crônicas em jornais locais, a maioria sob pseudônimos. Mas ainda não havia escrito Angústia, Caetés, Vidas Secas ou São Bernardo, livros que o consagrariam como um dos maiores escritores brasileiros.

Em 1927, Graciliano foi eleito em uma disputa sem fazer comícios nem campanha em Palmeira dos Índios, cidade sertaneja escravizada pela corrupção e pelo coronelismo – embora ele tenha reconhecido, em entrevista à Revista Globo em 1948, que sua coligação não jogou limpo: “Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”, afirmou. Tá perdoado, Graça.

Apesar disso, foi tão excelente administrador quanto escritor: com poucos recursos em caixa, realizou obras na cidade, construiu escolas, saneou comunidades e soube lidar com a vontade dos soberanos da terra. Foi talvez o único gestor de toda a história da cidade a deixar dinheiro nos cofres ao sair do cargo. Mas seu maior legado foram os dois relatórios anuais destinados ao então governador Álvaro Correia Paes em 1929 e 1930 [acesse o conteúdo na íntegra aqui e aqui].

Ao invés do tom burocrático e formal, Graciliano fez literatura. Talvez ele não quisesse apenas informar, mas provocar emoções, riso, choque... talvez não o tenha feito com essa consciência, mas por acreditar que a melhor maneira de comunicar a situação do município fosse através de metáforas e ironias sutis. O fato é que enxergamos a pena de Graciliano em cada palavra, em cada construção linguística nos relatórios de prestação de contas.

"Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.

Para que tal anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1929).

A tradição política ordena que os ocupantes e aspirantes a cargos públicos arrotem obras e feitos. O Velho Graça foi, ao menos até onde mostram as evidências, o único da nossa história que não se fiou em propaganda para convencer os outros da sua competência.

"A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1929).

"No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985. E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1930).

Sua conduta foi compatível com a visão que temos do autor ao ler seus livros. Enfrentou privilégios, cortou mamatas, demitiu aspones e colocou todo mundo para pagar impostos.

"Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.

E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.

Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.

Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heróica; encomendava-se a Deus e ia à capital. E os Prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1930).

"POBRE POVO SOFREDOR

É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu.

Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão.

Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1930).

"As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.

Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O município é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por causa das secas continuadas." (Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, 1929).

Segundo o jornalista Maurício Melo, da TV Senado, que exibiu um especial sobre Graciliano Ramos, os relatórios do escritor podem ser historicamente comparados a outro documento, escrito mais de um século antes: Lembrança e Apontamentos para o Governo Provisório, escrito pelo estadista José Bonifácio, que é considerado o primeiro projeto para a modernização administrativa do Brasil.

Ivan Barros, jornalista, advogado e escritor natural de Palmeira dos Índios, guarda os originais dos dois relatórios e de um Código de Postura Municipal, também escrito por Graciliano. "Dizem que os relatórios inspiraram a Lei de Responsabilidade Fiscal", afirma. "Eu vejo os Relatórios como uma lição para esses políticos fichas-sujas, ficha limpa e os que estão denunciados por improbidade ou irregularidades", disse, em entrevista à Gazeta.

Político ou escritor, Graciliano deixou muito mais do que bons livros para nosso deleite. Confira abaixo dois documentários sobre o escritor alagoano.