[Resenha] Cem anos de solidão


Na Inglaterra há um herói nacional chamado Horatio Nelson. Alguns o consideram um gênio das estratégias navais e é certo que ele deu muito trabalho a Napoleão no mar. Na batalha de Trafalgar (1805), onde a marinha inglesa, em menor número, inflingiu uma derrota violenta, ousada e inesperada aos barcos franceses e espanhóis, Nelson foi alvejado por um tiro de mosquete e morreu. O almirante -- e a maioria dos ingleses e europeus -- jamais imaginariam que essa escaramuça mudaria para sempre a geopolítica do mundo civilizado e as relações com o Novo Continente.

Com a frota derrotada, a Espanha afrouxou o domínio sobre a América Espanhola. O Paraguai proclamou a independência em 1811; a Bolívia, em 1809; as Províncias Unidas da Prata (ou Argentina), em 1816, após seis anos de guerra; o Chile, em 1818, e por aí vai. Com a frota vitoriosa, o Reino Unido proveu uma escolta respeitável para os Braganças, que fugiram de um Napoleão puto da vida e aportaram no Brasil. A ex-colônia virou capital do reino e se tornou independente em 1822.

"A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental."

Segundo lembra Laurence Hallewell, a América Latina foi o maior feito da vida de Nelson. Mas Nelson nunca soube disso [nem poderia]. Os britânicos ignoram ou dão pouca importância ao fato, a despeito do busto do almirante que se ergue, soberbo, na Trafalgar Square, em Londres.

Apesar dessa proximidade entre a América Latina e o resto do mundo, sempre pareceu existir um abismo entre ambos. Transposto aos poucos, mas sempre lá, debaixo dos pés. Quando Gabriel Garcia Márquez foi receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, na Suécia, ele enfatizou não os séculos de exploração nem a violência colonial, mas sim a solidão imposta à América Latina, apesar das esparsas concessões do Velho Mundo. "A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental", disparou.

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E continuou ensocando nos ouvidos de quem podia ouvir: "Por que a originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com todo tipo de desconfiança em nossas tentativas tão difíceis de mudança social? [...] a violência e a dor desmedidas da nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e não uma confabulação urdida a três mil léguas de nossa casa. Mas muitos dirigentes e pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós que esqueceram as loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino além de viver à mercê dos dois grandes donos do mundo. Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão".

Ou seja: "vocês estão dando uma de doidos, mas nós lembramos. E queremos tomar parte que é nossa de direito nessa civilização. A América Latina quer protagonismo".

Não à toa, o discurso completo feito em Estocolmo serve de prefácio ao livro Cem Anos de Solidão. O fato de a intelectualidade primeiro-mundista ignorar que um almirante britânico morto em combate "criou" a América Latina é um vislumbre dessa imensa solidão. Tão abissal que o velho Gabo, falecido ano passado, resolveu retratar do jeito mais aloprado e inimaginável possível.

História

Macondo é o vilarejo fictício onde se passa a história de sete gerações da família Buendía-Iguarán. José Arcadio Buendía e Ursula Iguarán contraíram um casamento cosanguíneo -- eram primos. A esposa vivia com o temor de que a prole nascesse com deformidades, especificamente rabichos de porco. Durante um ano se recusou a consumar as núpcias com o marido. Nessa época ainda viviam na aldeia de Riohacha -- que existe de fato, hoje é uma cidade no norte da Colômbia. Sem deflorar a esposa, José Arcádio -- brabo feito um guaiamum -- é alvo de um gracejo durante uma alectoromaquia [que é um nome em desuso para 'rinha de galo'... sempre quis uma oportunidade de usar essa palavra]. Mata o agessor em um duelo de lanças, fica transtornado por alucinações -- também vistas por sua esposa -- e emburaca no meio da floresta, junto com um punhado de gente de Riohacha, para fundar Macondo.

O tempo do discurso não começa por aí, mas isso já nos dá a primeira pista do romance: a transição de um lugar real para um lugar imaginário. Também é uma das representações da solidão [isolamento geográfico]. Além disso, Macondo também pode ser compreendida como uma metáfora da própria América Latina -- uma terra inóspita porém promissora, fruto e vítima dos desvarios de seus próprios governantes e de seus colonizadores. A chegada de outros colonos empreendedores europeus e norte-americanos provoca um surto de gentrificação, fenômeno que ocorre constantemente em subúrbios, que, por sua vez, acirra os ânimos das classes.

Buendía é fascinado pelo progresso. Mas não pelo progresso técnico-científico verniano, e sim por um progresso mitológico, baseado em artefatos mágicos e preparados alquimísticos.

No pé de uma serra, depois de atravessar um charco aparentemente infinito, José Arcadio e o séquito encontram o canto ideal para fundar Macondo. O patriarca é descrito como um fero empreendedor: executa um arremedo de planejamento urbano, plantações, criação de bichos e o mais importante: bane para sempre as rinhas de galo. Cria interesse pelas geringonças dos ciganos e faz amizade. Mas logo começa a endoidecer -- outra forma pungente de solidão: tenta usar ímãs para extrair ouro, passa horas em leituras e estudos, tem ideias extravagantes como construir casas de gelo numa floresta tropical e pensa ter criado uma arma avançadíssima: uma lupa que direciona os raios de sol e queima os inimigos. No fim, José Acadio -- outrora um líder empreendedor -- se isola da família e dos demais moradores.

Em um lampejo de lucidez, declara, como resultado de todas as suas medições e estudos: "a terra é redonda como uma laranja". Talvez uma ironia em relação às Grandes Navegações, quando a concepção religiosa do planeta em forma de disco excluía a América do mapa.

Buendía é fascinado pelo progresso. Mas não pelo progresso técnico-científico verniano, e sim por um progresso mitológico, baseado em artefatos mágicos e preparados alquimísticos. Melquíades, um dos ciganos que acaba desenvolvendo um papel crucial na trama, torna-se seu mentor. Dessa maneira, José Arcádio entra numa espiral de loucura que leva ao seu isolamento. De líder e empreendedor, decai para o doido exposto à degradação pública. Essas duas características refletem a solidão intelectual e social.

árvore genealógica dos Buendía-Iguarán (clique para ampliar). Créditos: Frank Ballesteros/Wikimedia Commons

A herança da família continua com José Arcádio [filho], o primogênito, Aureliano, Amaranta e a adotiva Rebeca -- que sofre de uma terrível compulsão por comer terra. Enquanto os "Josés Arcádios" da família são voluntariosos, vigorosos e passionais, os "Aurelianos" são mais introspectivos e idealistas. As mulheres da família -- naturais, adotivas e 'agregadas' -- cobrem um espectro de personalidades distintas. Enquanto Ursula cumpre o papel de matriarca, tendo vivido durante quase toda a narrativa [115 ou 122 anos], Amaranta vez por outra assume matizes de crueldade com tanto ímpeto que seu ciúme se converte em desejo sincero de morte.

Mesmo com um sogro conservador, Aureliano é aclamado coronel pelo lado dos liberais. Ele liderou 32 levantes e foi derrotado em todos. Em sua vida de guerrilheiro itinerante, teve 17 filhos bastardos, cada um com uma mulher diferente.

Em uma análise de discurso arquivada nos anais do Seminário Internacional de Texto, Enunciação e Discurso da PUC-RS, o pesquisador Marcelo Pessoa faz uma análise de discurso sobre a figura de Aureliano Buendía -- que, pessoalmente, foi a que mais me despertou interesse. O que não faltou na história da América Latina foram conflitos armados entre conservadores (governo) e liberais (rebeldes), e não poderia ser diferente em Macondo. Mesmo com um sogro conservador, Aureliano é aclamado coronel pelo lado dos liberais. Ele liderou 32 levantes e foi derrotado em todos. Em sua vida de guerrilheiro itinerante, teve 17 filhos bastardos (os 17 Aurelianos), cada um com uma mulher diferente. Ao contrário do que a primeira frase [deveras enigmática] do livro sugere ["Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento..."], Aureliano sobrevive a diversos atentados, incluindo envenenamento e suicídio, e consegue envelhecer pacificamente fabricando peixinhos dourados na velha oficina de José Arcádio.

Com isso, a solidão atinge não apenas uma família, mas todo o continente através desse traço comum [a guerra entre conservadores e liberais]. "Pouco a pouco, no entanto, e à medida que a guerra ia se intensificando e estendendo, a sua imagem foi se apagando num universo de irrealidade. [...] Acabou por perder todo o contato com a guerra. O que em outros tempos fora uma atividade real, uma paixão irresistível da sua juventude, converteu-se para ele numa referência remota: um vácuo", escreve Márquez.

Além dos 17 Aurelianos, o coronel teve Aureliano José Buendía com a prostituta Pilar Ternera, e os gêmeos Aureliano Segundo e José Arcádio Segundo com a esposa, Remédios Moscote -- que morreu pouco tempo depois, alvo inocente da ira ciumenta de Amaranta contra Rebeca.

A crítica velada ao patronato industrial passa pelos trechos onde cita uma plantação de bananas e na greve movida por José Arcádio Segundo após a conclusão da obra da estrada de ferro. Na segunda ocasião ocorre uma das situações mais surreais [e não são poucas] do livro: milhares de grevistas são alvejados pelas forças governistas em praça pública e seus corpos são transportados de trem [ah, a ironia] para serem despejados no litoral. Arcádio Segundo está entre os cadáveres, porém sobrevive. Quando volta, todos os habitantes negam o massacre. Uma campanha de desinformação de dar inveja a Goebbels faz com que os próprios familiares das vítimas acreditem que tudo não passou de um sonho.

À medida em que o leitor avança na narrativa, percebe que a família Buendía é um redemoinho. Os relacionamentos incestuosos, a maneira como as pessoas de fora são "tragadas" pelo destino trágico da família, a incapacidade de seus membros permanecerem distantes do seio familiar. Tudo aponta para uma espiral cujo desfecho é o fim e o esquecimento total. Na sétima geração da família, o último Aureliano -- fruto do incesto entre Aureliano Babilônia e Amaranta Úrsula [bisneta] nasce com um rabo de porco e cumpre a profecia de Melquíades, cujos alfarrábios são decifrados [malogradamente] por gerações de outros Aurelianos. Nesse ponto, chega ao fim não apenas os Buendía, mas toda a Macondo. Márquez fecha o livro da mesma forma enigmática como inicia:

"Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos [ou das miragens] seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra".

Análise

Cem Anos de Solidão é um exemplar clássico da escola literária conhecida como realismo mágico ou realismo fantástico -- tipicamente latino-americana. O estilo se caracteriza por mesclar as impressões do autor sobre o mundo e inserções de elementos absurdos de maneira aparentemente natural dentro da narrativa. A impressão de que o tempo não passa -- embora a trama se estenda por cerca de 130 anos ou mais -- também é característica do realismo mágico. Não há um compromisso com fatos reais, mas existe um forte componente alegórico que liga a história à realidade.

Na infância, o autor leu o maior repositório singular de histórias da literatura ocidental, O Livro das Mil e Uma Noites. Também se deleitava nas lembranças do avô, veterano da Guerra dos Mil Dias (1899 - 1902). O conflito foi disputado, adivinha só, pelos conservadores governistas e pelos liberais rebeldes, com a vitória dos primeiros e a consequente separação da Colômbia e do Panamá. É provável que essa e várias outras histórias transmitidas pela tradição oral -- sejam míticas ou verdadeiras -- influenciaram [ou até mesmo definiram] a composição de Cem Anos de Solidão.

A presença de elementos bíblicos subjaz a narrativa. A condução de Aureliano Buendía até o pelotão de fuzilamento assemelha-se à crucificação de Cristo na forma como é narrada. Por outro lado, enquanto o Messias bíblico venceu a morte ao morrer, Aureliano perdeu a vida ao viver: com o passar dos anos enclausurou-se na solidão. O guerreiro que foi derrotado em 32 batalhas e sobreviveu dedicou a vida a talhar e fundir peixinhos de ouro. Ao invés da morte gloriosa no campo ao lado dos demais combatentes, faleceu sozinho enquanto urinava debaixo da mesma castanheira onde o pai bateu as botas. O massacre dos 17 Aurelianos, tão combativos quanto o pai, também pode ser comparado à matança promovida por Herodes que, por medo de ser destronado entre os judeus, achou por bem passar todos os recém-nascidos no fio da espada.

A obliteração -- primeiro sintoma da solidão -- também é representada pela "peste da insônia", doença que priva os pacientes de sono e provoca demência a longo prazo. A doença é real, embora grave, e se chama Insônia Familiar Fatal. Apenas 60 casos foram registrados em toda a história da medicina. Em Macondo, vários moradores padeciam da enfermidade, especialmente os Buendía [adotados ou cosanguíneos].

A narrativa utilizada é em terceira pessoa, com narrador onisciente. Os parágrafos são extensos e encharcados de informações; não é recomendável uma leitura apressada, sob pena de perder detalhes valiosos da trama. As previsões de Melquíades sobre o destino dos Buendía e de Macondo constituem uma prolepse, ou seja, antecipação de eventos futuros dentro da história. É frequente também a utilização de digressões pelo autor, que não se importa em fazer manipulações temporais [isso acontece agora? Ou aconteceu no passado e o personagem está lembrando agora?].

Conforme a narrativa bíblica, é possível inferir que histórias de nações se confundem com a história das pessoas. A trajetória dos judeus é uma alegoria dos caminhos tomados por cada um. Por esse ângulo, Macondo também pode ser considerada uma metáfora de cada pessoa. É o porteiro ignorado dia após dia pelos advogados que passam por ele no hall do empresarial. É o morador de rua que se acostumou à rejeição e passa a negar a sociedade que o nega. É o bandido que se despe de toda moral e compaixão por viver cambaleando entre vida e morte. São as estirpes condenadas ao esquecimento eterno.