![]() |
Ilustração de Sagarana feita pelo célebre desenhista Poty Lazzarotto | |
Gosta de paisagens rurais, serranas, sertanejas? Então você precisa ler Sagarana.
Gosta de uma linguagem inovadora, sofisticada e ao mesmo tempo simples? Então você precisa ler Sagarana.
Gosta de histórias? Então você precisa ler Sagarana.
A obra que estreia o pujante estilo de Guimarães Rosa começou a ser escrita em 1937 e foi publicada em 1946. Sagarana – hibridismo entre "saga" (histórias germânicas de heroísmo e lutas) e "rana" (do tupi, "que se assemelha a") – reúne nove novelas que se tangenciam no ambiente onde são narradas e no estilo: O burrinho pedrês, A volta do marido pródigo, Sarapalha, Duelo, Minha gente, São Marcos, Corpo fechado, Conversa de bois e A hora e a vez de Augusto Matraga. Algumas edições têm como prefácio uma carta de Guimarães Rosa a seu editor, João Condé, onde ele detalha o processo de escrita das histórias.
Antes, é necessário deixar uma coisa clara sobre a escrita de Guimarães Rosa: é difícil acompanhar. O ritmo é lento como uma caminhada à beira da estrada, o autor se detém em criar fantásticas imagens do ambiente e utiliza palavras e construções pouco usuais. Ao ler Sagarana, o leitor deve esperar que toda a grandeza do sertão seja descortinada, e absorver tudo isso é um processo que requer esforço mental e algumas consultas ao dicionário. O próprio Rosa era ciente disso. Em entrevista a Günter-Lorenz, publicada no livro Diálogo com a América Latina, ele afirmou:
"Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua".
Assim como Cortázar, Rosa rejeita a ideia de que o sertão é simplório, e de que, portanto, contos ambientados nele precisam ser dotados de uma linguagem igualmente simplória. O sertão, para Rosa, carrega a aura do começo dos tempos. Por ter vivido e trabalhado como médico em comunidades rurais, ele sabia do que falava. Capturava histórias e conferia-lhe aspectos perceptíveis apenas com desprendimento e imaginação, sem dispensar o tratamento literário. O resultado é a união perfeita entre forma e conteúdo.
Novelas
Em O burrinho pedrês, o narrador heterodiegético passeia entre os personagens. Na história, um velho burro é escalado, na falta de cavalos, para acompanhar um grupo de vaqueiros que conduz uma boiada. Subestimado, o animal é o único que sobrevive, junto com dois vaqueiros, a uma cheia no rio que deveriam atravessar. Ao longo da narrativa, outras histórias menores são contadas, todas confluindo para o mesmo leito, como vários braços de um rio.A volta do marido pródigo foi a novela mais rapidamente escrita, segundo o próprio Rosa. De fato, além de mais curta, não tem uma estrutura complexa. É narrada em terceira pessoa. Na história, o malandro Lalino larga a esposa e o emprego na estrada de ferro para desfrutar de uma vida dissoluta no Rio de Janeiro. Quando o dinheiro encurta, volta para o interior, onde usará seu cartel de astúcias para ganhar prestígio e recuperar a mulher, que havia se casado novamente.
Sarapalha é um diálogo entre dois moribundos numa vila atacada por uma epidemia de malária. Durante a conversa, os dois primos revelam pontos-chave da história, até o inesperado desfecho.
Duelo começa com o ponto de partida clássico: traição conjugal. O marido traído mata, por engano, o irmão do amante, que ocorre de ser o chefe de polícia da região. A perseguição e permuta de papéis entre caça e caçador se estende por vários meses.
Em Minha Gente, Rosa consegue algo que eu já tentei sem sucesso até agora: usar o jogo de Xadrez como metáfora dentro da narrativa. A estratégia de avanço e recuo, paciência e sagacidade é conduzida até o desfecho da trama de amor, política e jogo.
São Marcos é o mais místico dos contos. Segundo Rosa, também foi o mais demorado de escrever pela necessidade de resgatar, na memória, detalhes do ambiente onde se passa a história. Aqui a natureza aparece mais viva do que nas outras histórias; ao invés de servir como background, ela é um personagem que interage com os outros.
Corpo fechado é a história do personagem Manuel Fulô, talvez o mais complexo dentre todos do Sagarana. "Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu 'humanamente' comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência", relatou Rosa na carta a Condé. A narração é um caso bem particular entre as novelas do Sagarana: é feita em primeira pessoa, mas com o narrador-testemunha, onde o personagem que conta a história é bem parecido com o próprio Rosa.
Em Conversa de bois, o narrador volta para a terceira pessoa. Num estilo que remonta às fábulas de Esopo, a história se passa numa viagem conduzida por um carro de bois com um carregamento de rapaduras e um defunto. O filho do morto é o guia, e o carreiro é o padastro do jovem. "Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, nêste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o enrêdo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a pôr em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (n. 2) - também com carro, bois, carreiro e guia - totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esquecida outra, da anterior", detalha o autor.
A hora e a vez de Augusto Matraga é a mais conhecida das histórias. Já virou filme (A hora e a vez de Augusto Matraga, Roberto Santos, 1965), e deverá chegar aos cinemas mais uma vez em setembro deste ano. A refilmagem ganhou cinco troféus no Festival Rio 2011. Dentre todas, é a que considero mais transcendental, parece um mito ou uma parábola. É a história da redenção de um vilão, o cara maligno, violento e poderoso que é quebrado, passa um tempo de penitência e ressurge para se redimir. Dentre todas, é a história mais cativante e que resolve o livro inteiro. Para Rosa, essa história é uma vitória pessoal: "desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir".
Estilo
A principal característica da escrita de Guimarães Rosa é a oralidade. A partir dela, consegue aglutinar novos elementos e criar neologismos que representam ideias complexas. No entanto, não nivela a linguagem por baixo: tudo o que é escrito traz um robusto carregamento de símbolos e imagens. Junto com os termos populares, mistura também palavras de uso corrente na medicina e biologia, como "trabécula" (feixe). Rosa tratava as palavras com cuidado; "as palavras têm canto e plumagem", escreveu na novela São Marcos. É notável o perfeccionismo em cada construção, ainda que seja, à primeira vista, excessivamente descritivo."E a estrada subia e descia, mais, como as descidas eram muito menores, nós subíamos sempre. A tarde tinha recuado. Um resto de cirros, no alto, em alvas trabéculas rarefeitas; um empilhado de faixas, tangerina e rosa, no poente; no mais, o céu era lisa campânula de blau". (Minha Gente, Guimarães Rosa)Sagarana lembra o poema O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros, onde ele também mistura propriedades estéticas das palavras.
"Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática
Só uso a palavra para compor meus silêncios."
O livro antes e depois do livro
O título Sagarana foi atribuído posteriormente ao livro de novelas. A versão original, iniciada e concluída em 1937 levava o nome Sezão, conforme aponta a pesquisadora Sônia Maria van Dijck Lima no artigo Canto e plumagem de Sagarana. Esse também era o título da primeira novela do livro, que mais tarde foi convertida em Sarapalha. O título provisório logo foi substituído pelo genérico Contos, assinado sob o pseudônimo de Viator, com o qual o livro foi inscrito no concurso de contos da editora José Olympio. Para constar, o livro de Rosa foi o segundo colocado no concurso, atrás de Maria Perigosa, escrito por Luís Jardim.Após várias revisões ao longo dos anos, Rosa alterou o nome do livro novamente para Sezão, retirou três contos que constavam no original (Bicho mau, Uma história de amor e Questões de família) e modificou alguns títulos: Sezão passou a ser Sarapalha, A oportunidade de Augusto Matraga se tornou A hora e a vez de Augusto Matraga e Envultamento virou São Marcos. Sarapalha foi 'rebaixado', e a história de abertura passou a ser O burrinho pedrês.
Sarapalha (Sezão) havia perdido de vez a graça de Rosa. Na carta a João Condé, se refere ao conto com certo tom de desprezo: "Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto". Na primeira ocasião, o título referia-se à doença, usava a enfermidade como panorama do conto. Ao trocar o nome para o da região fictícia, "o autor concedeu definição de palco ao drama das misérias humanas, integrando de tal modo espaço e criaturas, que até podemos dizer que a paisagem é a outra personagem também vitimada pela sezão", afirma Lima. De uma forma ou de outra, não há um registro que indique o motivo de a novela ter perdido importância no conjunto.
Também não se sabe o processo pelo qual Sagarana foi eleito o título do livro renovado, agora com nove contos. A obra foi imediatamente abraçada pela crítica: "De repente chega-nos o volume e é uma grande obra que amplia o território cultural de uma literatura, que lhe acrescenta alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de escritor, até ontem ignorado do público, penetra ruidosamente na vida literária para ocupar desde logo um de seus primeiros lugares", escreveu o crítico Álvaro Lins. À época, Rosa era tratado como um escritor estreante, e Sagarana foi o que hoje seria chamado de "viral": comentários positivos e negativos vieram de todos os lados, incluindo de escritores já consagrados, como Graciliano Ramos e José Lins do Rego.
"Sagarana: coisa que parece saga... Filei um sufixo do nheengatu", disse Rosa, em entrevista ao repórter Ascendino Lima.
Poliglota
Rosa era, talvez não por formação, mas por paixão, um filólogo. Em entrevista a uma prima que o entrevistou, revelou seu impressionante cabedal de idiomas. "Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.""De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira." (Carta a João Condé, Guimarães Rosa)Essa paixão foi aplicada com veemência em suas histórias. Ele sabia perscrutar e mexer nas estruturas de linguagem de uma região para criar narrativas. É como se observasse as cordas invisíveis que movimentam pensamentos e ações. É algo semelhante ao que Tolkien, que era filólogo, faz em O Silmarillion e outras obras – aliás, existe muito mais proximidade entre Rosa e Tolkien do que entre o autor britânico e muitos romances épicos contemporâneos. Em Sátira: origens e princípios, Matthew Hodgart defende que a qualidade literária de uma obra se define em duas etapas: primeiro, o grau de comprometimento do autor com a realidade que relata, ou o que chamo de imersão. Segundo, a qualidade da abstração; ou seja, mesmo imerso, o autor deve também observar a realidade de um plano geral. E isso é o que Rosa faz com maestria em Sagarana: mergulhado na imensidão do sertão, transcende. Mal posso esperar por Grande sertão, veredas.