Os quatro níveis de leitura e a maneira ideal de ler um livro, segundo Mortimer Adler


Há alguns anos, quando comecei o curso de jornalismo, resolvi turbinar minha capacidade de leitura. Foi quando Machado passou a me encantar: lia tudo dele que estivesse à mão, geralmente em um ou dois dias. Tentei ler A divina comédia no mesmo ritmo e, apesar de não ter perda total, hoje preciso reler a obra de Alighieri. Depois parti para um livro de Schopenhauer. Decepção total. Nunca mais li nada dele.

O problema é que eu, como muitas pessoas, via livros como copos de água, onde o desafio era beber tudo. É melhor do que nada, confesso, aprendi muito com essa ideia na cabeça. Mas também perdi muito. O que importa não é a velocidade da leitura, mas o que o leitor retém após. Cada livro deve ser lido em um ritmo próprio. Mas como saber se determinado livro merece mais atenção do que outros? Confiar apenas nas opiniões de booktubers e resenhistas? Indo mais fundo, para que realmente serve um livro?

Mortimer Adler e Charles Van Doren propõem essas e muitas outras perguntas – com suas devidas propostas – em Como ler livros: o guia clássico para a leitura inteligente. O livro carrega o pragmatismo do movimento pró-educação norte-americano, tradição secular que se mantém por lá e começa a substituir a literatura de auto-ajuda no Brasil – pense em quantos livros e artigos na internet têm no título a fórmula "Como fazer algo".
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Adler foi um célebre teórico da educação nos Estados Unidos. Nunca chegou a completar um curso superior formal, mas soube se educar através da educação clássica, devorando desde os filósofos da antiguidade até os modernos. Pode-se dizer que era um polímata, da categoria de Confúcio e do nosso Ruy Barbosa. E a problemática que deu origem a Como ler livros é a mesma que podemos observar na nossa realidade hoje: pouca gente sabe, de fato, ler livros. Na realidade, o índice de analfabetismo funcional entre universitários é de dar desespero.


O pensamento pedagógico de Adler fundamenta-se na filosofia educacional de Platão e Aristóteles, que foi aplicada na Idade Média: o trívio e o quadrívio, que formam as sete artes liberais. São elas: gramática, lógica e retórica (trívio) e aritmética, geometria, astronomia e música (quadrívio). Seus livros mais representativos – dentre mais de 50 – são The Paideia proposal: an educational manifesto; Paideia problems and possibilities e The Paideia program, nenhum deles disponível em português.

Como ler livros, no entanto, não tem importância menor na obra de Adler. Nasceu justamente da dificuldade que ele notou em seus alunos em relação à leitura. Foi publicado pela primeira vez em 1940 e reeditado em algumas ocasiões – a edição mais recente em português conta com a colaboração de Charles Van Doren. Citando um artigo publicado no Atlantic Monthly pelo pedagogo James Murcell, Adler resume o problema:

"Será que os alunos, nas escolas, aprendem a ler bem em sua língua materna? Sim e não. Até o sexto ou sétimo anos, a leitura, como um todo, é bem ensinada e aprendida. Até esse nível verificamos um progresso geral e constante, mas além dele as curvas tornam-se retas horizontais. Isso não acontece porque o aluno chega ao limite natural de sua eficiência no sétimo ano (...) também não significa que a maior parte dos alunos do sétimo ano leia suficientemente bem para todos os fins práticos (...) Ele consegue ler uma obra simples de ficção e gostar dela. Mas coloque-o diante de uma exposição sucinta, de um argumento formulado com concisão e cuidado, ou de uma passagem que demande consideração crítica, e ele estará perdido."

Não é de surpreender, portanto, que Como ler livros tenha uma orientação pedagógica ancorada na prática. Não é um livro de linguajar complicado nem de reflexões filosóficas profundas. A maior reflexão que o leitor faz é "por que leio tão mal?".

O livro divide-se em quatro partes, 21 capítulos e dois apêndices interessantes: o primeiro é uma lista com sugestões de leitura, todos livros clássicos, que cobrem o período que se estende da antiguidade até o século 19. Como o autor é norte-americano, há maior ênfase na literatura de língua inglesa. O segundo é composto por breves exercícios de leitura, onde o leitor é desafiado a aplicar as regras práticas propostas ao longo do livro. Apesar de ser um livro exaustivo sobre o tema proposto, Como ler livros ainda é genérico. Por exemplo, há um capítulo dedicado à leitura de romances e obras "imaginativas", mas que deixa muitas brechas, como o fato de que a ficção pode transcender e escapar de seus limites para encontrar respaldo na realidade, amplitude que não é alcançada pelo termo "leitura imaginativa".

O método proposto

Para Adler, a atividade de leitura é semelhante a uma aula, mas não uma aula meramente expositiva. O dever do aluno – ou leitor – é questionar o que está sendo exposto no livro, analisar os argumentos do autor e emitir seu juízo sobre o assunto baseado também em argumentos. É uma tradição claramente baseada na lógica formal, onde um argumento é formado por premissas.

"O livro é como a natureza – ou o mundo. Quando você os questiona, eles lhe responderão na medida da sua própria capacidade de pensar e analisar", alega o autor. A leitura se torna necessária a partir de duas constatações: a primeira é a desigualdade inicial de entendimento do leitor em relação ao autor, ou ao conhecimento que ele transmite no livro. A segunda é a capacidade do leitor de superar essa desigualdade.

Para que isso aconteça, o leitor deve fazer quatro perguntas básicas durante e após a leitura. Podem parecer perguntas tolas, mas pense no último livro que você leu e tente respondê-las.

1. O livro fala sobre o quê? Com isso, procura-se desvendar o tema central do livro, seja uma obra prática, seja uma peça teatral.

2. O que exatamente está sendo dito e como? Aqui o leitor deverá divisar as ideias, afirmações e argumentos utilizados pelo autor para transmitir a sua mensagem. É útil sobretudo para livros filosóficos e clássicos.

3. O livro é verdadeiro em todo ou em parte? A partir das respostas das perguntas anteriores, o leitor deve formar um juízo a respeito do que está sendo ou foi lido.

4. E daí? A partir das questões e respostas anteriores, deve-se pesar a importância e a necessidade de pesquisar e buscar novas informações a respeito do assunto. É uma pergunta fundamental para o último nível de leitura.

Não se deve tomar isso como um questionário padrão para ser respondido ao final da leitura, mas questões mínimas a serem feitas durante a atividade. É um requisito fundamental da leitura ativa. No início é complicado e requer mais esforço do que parece, mas com a prática, desenvolve-se a habilidade para questionar de maneira natural. "Ler é pensar, e o pensamento tende a se expressar em palavras – faladas ou escritas", defende Adler.

Durante a leitura – precisamente antes da leitura do texto principal do livro – o leitor precisa firmar um acordo com o autor, aceitar seus termos, para então entender o que está sendo lido. Por termos pode-se entender palavras-chave ou conceitos-chave. Por exemplo, qual a acepção da palavra "livro" para Roger Chartier em A aventura do livro? É o mesmo conceito usado pelos autores de Impresso no Brasil, livro composto por artigos? Os autores deste último concordam entre si? O que é "o mal" na Bíblia e na famigerada série de artigos de Hannah Arendt? Até o terceiro nível de leitura – próximo tópico –, o leitor deve firmar um terreno comum com o autor ao aceitar seus termos, o que não implica ausência de questionamento.

Apenas no quarto nível – a leitura sintópica, ou de vários livros sobre o mesmo assunto – é o leitor quem vai estabelecer os termos e fazer com que os autores entrem em acordo. Isso equivale a descartar certos usos e conceitos de palavras em desacordo com a proposta do leitor, segundo critérios por ele estabelecidos.

Os níveis de leitura

Elementar – Consiste na leitura de nível mais básico ou rudimentar. É a leitura de crianças que estão tendo contato com as palavras e frases pela primeira vez, e têm como única preocupação saber o que está escrito. A ausência ou falhas na educação de base podem comprometer o desenvolvimento da leitura elementar e, consequentemente, dos demais níveis. Mas também pode ser um desafio para quem começa a ler livros em língua estrangeira.

Inspecional – Esse tipo de leitura é semelhante à feita por bibliotecários para catalogar livros; eles não leem todos os livros da biblioteca, mas fazem uma leitura técnica que lhes permite conhecer, em linhas gerais, do que se trata o livro. Normalmente é dada ênfase aos elementos pré-textuais (sumário, orelhas, contracapa, às vezes prefácio). Na leitura inspecional, o leitor vai ler alguns trechos em intervalos curtos de tempo; "o objetivo da leitura inspecional é extrair o máximo possível de um livro num determinado período – em geral, um tempo relativamente curto". É um nível importante para quem está selecionando uma bibliografia para pesquisa ou análise e precisa saber o que é relevante.

Analítica – É a melhor leitura possível de um único livro. A ideia aqui é que o leitor leve o tempo necessário para ler, sem se preocupar com a velocidade. Não é uma leitura diversional ou informativa, mas uma leitura "intensamente ativa" e sistemática. "Nesse nível, o leitor adquire o livro – a metáfora é bem apropriada – e imiscui-se nele até que o livro efetivamente lhe pertença", argumenta o autor. O propósito da leitura analítica é entender o livro em sua integridade.

Sintópica – É o nível mais exigente de leitura. Como já foi dito, nesse ponto o leitor vai firmar um acordo comum entre vários autores sobre um tema específico. É uma etapa fundamental para estudantes de nível superior, exige comparação e confronto de ideias e conceitos e, a partir disso, o leitor desenvolve uma análise que não está em nenhum dos livros lidos.

O resumo, até aqui, não esgota o conteúdo de Como ler livros. Adler propõe ainda 15 regras gerais de leitura que serão descritas em outro post. Além disso, cada nível de leitura conta com outras especificidades e subdivisões que o próprio leitor deve sondar. Outro aspecto que merece ser ressaltado é a classificação dos livros conforme suas particularidades e regras de leitura, todos elencados na terceira parte: livros práticos, imaginativos, peças e poemas, livros de história, ciências e matemática, filosofia e ciências sociais.

Como ler livros é um título de natureza prática que não exige habilidade e experiência de leitura, apenas paciência e aplicação. Pela formação do autor, pode ser notado um tom positivista nas ideias – observo a quem interessar que, no prefácio da edição mais recente, há uma citação de Olavo de Carvalho, do livro Aristóteles em nova perspectiva. Muitas dos níveis, regras e etapas de leituras podem ser utilizados intuitivamente por leitores experientes, sem a necessidade da exposição. Talvez o maior mérito da obra seja o de colocar o livro como uma fonte de conhecimento que só se completa quando o leitor lê, decifra os argumentos, absorve seu conteúdo e a partir desse processo forma um juízo. Na era das opiniões prontas, dos entreveros de redes sociais e da crítica superficial, Como ler livros é um lembrete de que não sabemos ler bem e ignoramos a tradição milenar do conhecimento ocidental. Mas podemos aprender e melhorar.