Corpo, sangue e morte: duas mulheres e uma criança na guerra civil somali

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Desde 1986, a Somália vive uma guerra civil. Este ano completam-se 30 anos do início da Revolução Somali, quando o ditador socialista islâmico Siad Barre passou a atacar os clãs em nome da unificação da autoridade governamental. Décadas antes, a Somália passaria por dois processos de ruptura: a independência na década de 1960, com a adoção do modelo econômico socialista, e o alinhamento brusco com os Estados Unidos em 1977, depois que a União Soviética cessou o apoio financeiro. Em 1991, Siad Barre cai e a Guerra Civil começa oficialmente.

Uma janela da história, do ponto de vista monocromático, masculino e colonialista norte-americano, foi exibida no filme Falcão Negro em Perigo (2001), onde militares realizam uma operação mal-sucedida na capital Mogadíscio. Nadifa Mohamed, em O pomar das almas perdidas (Alaúde/Tordesilhas, 2015, 296 p.), revela a história por outros ângulos e acrescenta novos matizes, passando ao largo do olhar colonialista com que o ocidente percebe a África e seus conflitos.

O livro narra a história de três mulheres distintas em idade, hierarquia social e origens. Deqo é uma criança órfã, oriunda de um campo de refugiados e que consegue se virar nas ruas para sobreviver. Kawsar é viúva de um militar bem-sucedido e com pequenos investimentos imobiliários que permitem uma vida confortável e independente; seu caráter foi profundamente marcado pelo suicídio da única filha. Filsan é uma oficial do exército com um alto status social; abandonada pela mãe, psicologicamente assediada pelo pai e ansiosa por sua aprovação, passa a reproduzir a truculência à qual se acostumou. O cenário da história é Hargeisa, a segunda maior cidade da Somália, incrustada em uma região desértica cercada por colinas. A trama se passa no final da década de 80.

Durante uma celebração organizada pelo governo no estádio da cidade, Kawsar e um pequeno séquito de senhoras presencia a agressão de um grupo de oficiais a uma criança. Deqo, por sua vez, que foi retirada do campo de refugiados para se apresentar com um grupo de dança ao representante do governo, consegue fugir após a intervenção de Kawsar. Esta conhece pela primeira vez a realidade das prisões somalis e eventualmente é torturada e aleijada por Filsan – que havia sido assediada momentos antes por um dos homens mais poderosos do governo. Essa é a primeira tangente na cadeia de acontecimentos que une as três personagens. Daí em diante, cada um segue sua própria jornada até o reencontro no bangalô azul de Kawsar, onde se inicia o desfecho do livro.

Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, mas só viveu durante cinco anos na Somália. Pouco antes da eclosão dos primeiros conflitos, sua família se mudou temporariamente para Londres. No entanto, com a iminência da guerra, a estadia se tornou permanente. Já adulta, estudou política e história na Universidade de Oxford. O pomar das almas perdidas é seu segundo livro, lançado em 2013. O primeiro, intitulado Black mamba boy (sem edição em português) – baseado, em parte, nas histórias narradas por seu pai, marinheiro mercante – foi publicado em 2009.

A prosa de Nadifa Mohamed é competente. Ela utiliza a voz da narração na terceira pessoa de modo que o leitor se sinta próximo ao personagem. Cria descrições realistas sem prescindir de símbolos e metáforas, o que enriquece a narrativa sem deixar o leitor perdido – como o marcante trecho abaixo, que mais parece um disparate, caso o leitor não esteja atento ao contexto. Bons livros têm uma frase que o encerram. O trecho que encerra O pomar das almas perdidas, eu diria, é esse.
"Os soldados vão devolver a rua ao deserto, desligar as estrelas, matar os cachorros e apagar o sol em um poço".
A história também somatiza os efeitos do sofrimento e da guerra. Em romances menos competentes, a dor da mulher em relação aos conflitos bélicos resume-se à solidão deixada pelo marido que foi à luta, o leito vazio, o pranto e o luto. Nadifa relata com crueza a dor física, palpável, visível e malcheirosa manifesta no corpo, bem como a sexualidade e os desejos femininos. O corpo é a fonte de alegria e dor, prazer e morte. Não há nada de passivo na mulher; elas podem segurar o porrete ou ter os ossos partidos tanto quanto qualquer homem. Matar e serem mortas. A imagem do corpo como o recipiente de uma força natural é recorrente.
"Seu corpo está se desgarrando de seu controle, tentando se afastar dela, ou pelo menos é o que lhe parece".
O sangue, por sua vez, revela a fragilidade da vida e a rapidez com que ela pode se apagar. O corpo de um adulto saudável comporta entre quatro e seis litros de sangue. Se uma artéria for rompida e dois litros de sangue deixarem o corpo, o coração dispara e pode pifar em qualquer instante. Se o sangue deixa o corpo, não há esperança. A metáfora é bem trabalhada no final do livro, quando Filsan testemunha o assassinato de estudantes por meio da total drenagem do sangue para abastecer os estoques destinados aos soldados feridos.

Em todos os aspectos, O pomar das almas perdidas é um ótimo livro, principalmente para leitores acostumados com os gêneros ficção histórica, não-ficção ou até biografia. As personagens são trabalhadas com esmero artesanal, cada uma delas poderia ter, de fato, existido. Nada na trama sobra ou constitui elemento à toa que só serve para compor o arco. Aquelas pessoas poderiam ser nós, por isso não podemos ignorá-las. O único ponto pouco satisfatório foi o desfecho. Mas não pretendo arruinar a experiência dos leitores.