Anton Chekhov foi um dos maiores escritores. Sua especialidade era a escrita de contos, embora também se arriscasse na dramaturgia. Escrevia para arregimentar uns caraminguás e pagar sua faculdade de medicina, mas evoluiu e criou inovações formais que passaram a nortear a escrita de contos. Formou-se, mas até hoje é mais reputado como escritor do que como médico. "A medicina é a minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante", dizia. Publicou quase 200 contos, cinco novelas, dois ensaios e 14 peças. Histórias como A corista e Angústia dão um vislumbre da capacidade narrativa do russo.
Também escreveu cartas, como era de costume no século 19. Numa delas, endereçada ao seu irmão mais velho, o pintor Nikolai Chekhov, Anton fala sobre o seu ideal de pessoa civilizada. Nikolai era talentoso, porém alcóolatra, e frequentemente Anton lhe escrevia cartas com conselhos e recomendações. Ambos morreram precocemente vítimas de tuberculose, Nikolai aos 31 anos e Anton aos 44. Em tempos onde o ódio grassa e o extremismo mata cada vez mais, vale a pena relembrar o motivo de vivermos em sociedade e como essa convivência pode ser pacífica e produtiva.
O excerto abaixo foi traduzido daqui. Essa e outras cartas podem ser lidas no livro A life in letters (Penguin, 2004, 226 p.). Infelizmente não tem versão em português.
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Pessoas civilizadas devem, acredito, satisfazerem os seguintes critérios:
1. Elas respeitam seres humanos como indivíduos, e, portanto, são sempre tolerantes, gentis, corteses e amenas. Elas não fazem cena por causa de um martelo ou um apagador extraviados; elas não fazem você sentir como se elas estivessem te concedendo um grande benefício quando convivem com você, e jamais fazem escândalo quando partem [...]
2. Elas têm compaixão pelos outros, não importa se são mendigos ou gatos. O coração delas sofre a dor do que está oculto a olho nu [...]
3. Elas respeitam a propriedade das outras pessoas, e, portanto, pagam as dívidas.
4. Elas não são desleais e temem mentiras como temem fogo. Elas não mentem mesmo nos assuntos mais triviais. Mentir para alguém é um insulto, e o mentiroso diminui diante dos olhos da pessoa para quem ele mentiu. Pessoas civilizadas não fingem ser melhores do que são; elas se comportam nas ruas da mesma maneira que se comportam em casa, não tentam se gabar para impressionar seus filhos [...]
5. Elas não se esforçam para provocar a simpatia dos outros. Elas não usam os sentimentos de outras pessoas para serem notadas e mimadas. Esse tipo de coisa é utilitarismo barato, é vulgar, manjado e falso [...]
6. Elas não são vãs. Elas não perdem tempo com a bijuteria da adulação de celebridades, permitindo-se apertar a mão de um bêbado, a exagerada cordialidade da primeira pessoa que veem no balcão, são a alma e a vida do bar. Eles consideram frases como 'eu sou um representante da imprensa' – o tipo de coisa que só escutam de jornalistas inferiores – um absurdo. Se elas recebem alguns centavos por seus trabalhos, não fingem que ganham 100 rublos ao ostentarem seus feitos, e elas não se vangloriam de serem qualificadas para serem admitidas em lugares onde outras pessoas não são [...] Verdadeiros talentos se sentam nos lugares mais escuros, se misturam com a multidão, evitam a ribalta... Como [Ivan] Krylov dizia, o barril oco faz mais barulho do que o cheio [...]
7. Se elas têm talento, valorizam-no. Orgulham-se dele. Elas sabem que têm uma responsabilidade de exercer uma influência civilizada nos outros, ao invés de sair com eles sem rumo. E elas são delicadas em seus hábitos [...]
8. Elas trabalham desenvolvendo sua sensibilidade estética. Pessoas civilizadas não apenas obedecem basadas em seus instintos. Elas exigem mens sana in corpore sano (n. e. corpo são, mente sã).
E por aí vai. É assim que pessoas civilizadas são. Ler Pickwick e aprender um discurso de Fausto de cor não é suficiente se seu propósito é se tornar uma pessoa verdadeiramente civilizada e não afundar a um nível mais baixo daqueles que o cercam.