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Salutations larmoyantes, ilustração da edição de 1580 de Viagem à Terra do Brasil |
Escrito por Fabio Antonio Costa, mestrando e especializando pela PUC-SP [fabioantoniocosta at hotmail.com]
A obra Viagem à Terra do Brasil do francês Jean de Lery editada pela primeira vez em 1578 na Europa é uma importante fonte de informações acerca da parte inicial do período colonial do Brasil, dos primeiros contatos dos povos Europeus com os povos Ameríndios e do contato da Europa pós-medieval no século das Grandes Navegações.
Pelas surpresas que a vida proporciona, Lery perdeu a obra original na perturbada Europa do século 16 e viu-se obrigado a relembrar os eventos da viagem ao Brasil e demorou quase duas décadas para republicá-la, devido a alguns fatores como a concorrência de obras menos complexas (e mais fáceis de ler) que antes não afetavam o sucesso que a obra de Lery fez.
Apesar da visão religiosa e européia da época (Lery se admitia um escravo de Deus) o viajante francês traz uma minuciosa visão do Novo Mundo e de seus habitantes.
Filho de pais protestantes, modesto sapateiro, estudante de teologia e discípulo do mestre Calvino, Lery viu-se obrigado a abandonar o Velho Mundo devido às disputas religiosas entre católicos e protestantes e pelas novas possibilidades da França Antártica, na época uma colônia francesa na Baia de Guanabara, atual estado do Rio de Janeiro. Lery chamava a nova terra de América e Terra do Brasil (p. 53).
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Apesar da visão religiosa e européia da época (Lery se admitia um escravo de Deus) o viajante francês traz uma minuciosa visão do Novo Mundo e de seus habitantes.
É destacada a vida em alto-mar. Em meio à população do navio encontram-se mulheres e crianças, levados com propósitos bem definidos a América. Dificuldades como o apodrecimento da comida e água, doenças e mortes eram comuns nessas viagens, que também vivenciou encontros com outros navios em alto-mar, como naus Espanholas e Inglesas. Tormentas e calmarias dificultavam a navegação. Após alcançar o Brasil, chamado por ele também de França Antártida e quarta parte, (referência ao quarto continente conhecido na época) Lery e sua tripulação aportam no território do Rio de Janeiro atual. Sua visão dos habitantes da América é muito próxima de outros viajantes europeus como Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio (citados por ele).
A visão do autor acerca dos habitantes e seus costumes tende em alguns relatos para a ideia que os índios viviam na escuridão (p. 209) e em outros relatos os considerava puros em relação aos habitantes do Velho Mundo Europeu.
[...] nos índios do Brasil fica clara a diferença entre o canibalismo e antropofagismo [...]
Adjetivos como ‘selvagem’, ‘ignorantes’, ‘cães’, ‘vingativos’ e ‘iletrados’ são comuns em sua obra. Formas de organização dos índios, principalmente dos Tupinambás e Margaia que Lery conviveu integralmente foram minuciosamente exploradas; tinham grande diversidade de idiomas, eram robustos, bebiam da fonte de juventude (p. 112), pintam-se de barro, banhavam-se muitas vezes por dia, excelentes usuários de armas de guerra, praticavam o canto e tratavam muito bem seus amigos, ao contrário dos inimigos. Quando em guerra com tribos adversárias, Lery informa da grande violência e selvageria que presenciou com as inúmeras flechas (p. 189) que as tribos lançavam uma sobre a outra e da crueldade que sofriam os guerreiros quando se efetivavam os encontros entre eles.
Merecem destaque os comentários do historiador acerca do antropofagismo; nos índios do Brasil fica clara a diferença entre o canibalismo e antropofagismo, sendo que nos índios o ato de comer o inimigo não estava ligado a ideia única de alimentação e sim de absorver a coragem e boas qualidades dos mais nobres guerreiros. No passar do ano que Lery ficou no Brasil, presenciou que o ato antropofágico era muito comum entre as tribos, nos rituais em que os prisioneiros eram preparados para serem devorados normalmente era por vingança por parentes ou amigos devorados anteriormente, sendo que o próprio Lery por momentos ficou aflito com ele ser a vítima desses rituais dos povos da América. Por parte dos povos indígenas, era evitado se alimentarem dos miolos e características que por eles não eram bem vistas, como se alimentar de animais que fossem considerados lentos, com receio de assim também ficarem.
Outros aspectos são detalhados; a poligamia masculina, casas que comportam até 600 índios, o conceito de machismo inerente a eles, lamentações com altas cantorias aos mortos, curiosidade indígena nos rituais cristãos, divisão dos afazeres masculinos e femininos e as crenças indígenas como o espírito de Anhagá.
No retorno a Europa, Lery disserta sobre o gelo visto nas Américas e as inúmeras dificuldades em seu retorno, merecendo destaque o fim dos alimentos e água que entrava nas frágeis embarcações; a situação esteve tão precária que Lery relata que se alimentaram do Pau-Brasil dentro do navio, ratos e ratazanas e rodelas de couro, havendo horas em que os próprios tripulantes viviam a ameaça de devorar os esqueléticos corpos uns dos outros como o próprio autor temia acontecer, situações tais que arruinaram a saúde da tripulação. Isso na visão de Lery que o mundo é uma máquina redonda de água e terra miraculosamente suspensa no espaço.
Em suma, adicionando o glossário dos idiomas Português-Tupi, a obra de Jean de Lery é um importante manual de informações históricas, geográficas e antropológicas dos habitantes do território Sul da América no século 16 e mesmo sendo uma visão fortemente influenciada pela religião cristã, permite ao leitor descobrir importantes informações com a minuciosidade e detalhamento nem sempre disponível de outras experiências.
Livro: LERY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia. 2007.