As relações de classes no Brasil, por mais que se queira negar, são baseadas na dissimulação. É o racismo que não é bem racismo, que inventa subterfúgios para escapar da reprovação, mas que espalha veneno insípido e indelével cujos efeitos se traduzem em ódio, dor e violência. O conflito abandona os contrastes e assume outras matizes, nas quais o paroxismo pode se manifestar em um ritual egoísta de sexo ou num simples tiro na cara.
Essa é a base da crônica social Reima, livro de doze capítulos escrito pelo professor de literatura Dau Bastos e publicado em 2009 pela Editora Record. A obra tem uma forte pegada sociológica, porém o discurso é entremeado nas histórias dos personagens, que vão se desvelando ao longo da trama. Cada um tem conflitos extremamente complexos e particulares, o que torna impossível a pasteurização típica de alguns romances, onde os personagens jamais se distanciam da sua zona demarcada.
Nicole é a franco-portuguesa órfã de mãe e objeto de interesse sexual do pai. Educada e formada em Ciências Sociais, ela passa a vida em busca do orgasmo, sensação que os parceiros conterrâneos -- pouco familiarizados com uma coisinha chamada clitóris -- não conseguem provocar nela. Bastos naturaliza o egoísmo colonizador e volta-o contra os próprios cidadãos das ex-metrópoles. O sexo com franceses é pragmático, o que, aliado aos traumas afetivos, contribui para a frigidez de Nicole.
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Quando conhece o músico bissexual carioca Boiô, é apresentada ao paraíso. Atribui o molejo e habilidade sexual do brasileiro, inicialmente, à cor da pele, mais uma pincelada da naturalização proposta por Bastos. O carioca, por sua vez, é um egresso dos Prazeres, favela que protagonizará um conflito armado entre facções, amigo de infância do traficante Camarão e do líder comunitário Juca. Boiô e Nicole permanecem juntos, mas a incapacidade de manter um relacionamento sedentário, paixão pela música e preferência do brasileiro por outros homens levam ao fim do relacionamento, marco que se torna outro conflito para Nicole: afinal, foi o único parceiro que lha provocou espasmos orgásticos.
O interesse de conhecer as origens do ex-amante e o tom mórbido que a capital francesa assume no psicológico de Nicole arrastam-na para trópicos inferiores. No Rio de Janeiro, passa a viver em um condomínio de classe média situado entre os Prazeres -- que, apesar de ser substantivo próprio, é sempre referido no plural -- e o Cerro, favela que se contrapõe em rivalidade. Nas relações do condomínio Equitativa com as comunidades, Dau Bastos deduz a tensão quase insuportável entre a classe média e os favelados, algo que muitos teimam em dizer que não existe. A convivência forçada leva à formação de laços que trafegam entre amor, amizade, interesse, repulsa e raiva.
O mote do livro é a tensão que perdura meses entre o Cerro, o Equitativa e os Prazeres.
No condomínio, uma das principais figuras é a síndica Clara, síntese do cu-docismo [habilidosamente desconstruído no final do livro], que manteve um triângulo amoroso entre o preparador de textos Rodapé e o aspone Gabriel. Ao sentir os calores da menopausa, desperta para a necessidade de ter um filho, o que acabou rompendo o relacionamento a três, onde Rodapé era favorecido e Gabriel servia de "contrapeso". O primeiro é intelectual frustrado, que dedica a vida a melhorar textos alheios, mas é incapaz de escrever um livro próprio. Mas é inteligente, culto, bom de lábia e senhor de uma luxúria insaciável, ao passo que o rival é corpulento e bruto, desprovido do mínimo traquejo para a conquista e com potencial para o crime.
Manuela, filha de Gabriel, tem contatos próximos com os moradores de ambas as comunidades, com os quais não hesita em dividir a mesa de bar ou a cama -- tanto que foi iniciada pelo porteiro negro Juca. Não se perca ainda, as relações que se estabelecem pelo contato sexual são amplas e ganha matizes que variam entre desejo e ódio. O romance, dessa forma, desconstrói e enterra de vez o ideal romântico que ainda predomina em alguns escritos.
Em resumo, é possível construir um infográfico intrincado sobre quem transa ou já transou com quem em Reima.
O mote do livro é a tensão que perdura meses entre o Cerro, o Equitativa e os Prazeres. Os traficantes do Cerro, liderados pelo alagoano 'paraíba' Reimoso, preparam um avanço sobre os Prazeres, onde Camarão manda, para unificar as comunidades. Há também um componente pessoal, uma vez que Reimoso foi injustamente expulso tanto do seu trabalho no Equitativa quanto da comunidade rival. No meio de ambos, o tradicional condomínio de classe média, capitaneado pela síndica Clara, vive o risco de ser ocupado durante a invasão. Conhecendo os não-pobres-ascendentes brasileiros, não é difícil imaginar que os sentimentos dos moradores não passam de uma reedição da casa grande e da senzala -- mas nesse caso a senzala vem armada com AKs-47.
Análise
Apesar de a violência e o sexo -- Eros e Tânatos -- pautarem todo o romance, não se deve ter a percepção de que o mesmo é superficial. Bastos consegue passear pelas características, sentimentos e decisões dos personagens, apesar de utilizar um ponto de vista narrativo que pessoalmente não curto: o narrador onisciente "intrometido" ou intruso. Em certos momentos ele demonstra conhecer particularidades sobre os personagens que nem os próprios sabem. Por um lado pode ser vantajoso para o tipo de romance que ele quis escrever, já que apresenta ao leitor os "porquês" daquela situação de conflito. Por outro, cansa e tira o clima de ação transmitido pela capa e pela sinopse do livro. Lança o foco sobre as questões sociológicas e antropológicas, os construtos culturais sobre raça e diversidade sexual e a intolerância griffithiana. Não sobre a trama em si. O autor assume para si todas as opiniões e visões que estão ali escritos, mesmo atribuindo-os aos personagens.A sociedade brasileira precisa de uma certa instrução, nada contra, e a literatura brasileira carece disso. Mas eu quase não sobrevivi ao primeiro capítulo, onde cansei de me compadecer pelas desventuras sexuais de Nicole.
Mesmo minúsculo em área, Alagoas é o estado com a maior área plantada de cana-de-açúcar da região. Conhecer um personagem que teve origem nesse contexto é fascinante.
Para quem insiste no livro, as coisas ficam mais interessantes. Dau Bastos utiliza uma linguagem de fácil trânsito entre o erudito, o regional e o demótico. O próprio título do livro faz referência tanto a um termo grego quanto à corruptela do Norte e Nordeste. 'Reima' carrega uma conotação de doença, o mesmo sentido que pode ser atribuído ao personagem Reimoso. Ambos os termos têm a mesma raiz de 'reumatismo', por exemplo. Assim, fica fácil deduzir que uma sociedade doente (Reima) produz indivíduos potencialmente nocivos (Reimoso). O segundo termo é popularmente utilizado para definir alimentos saudáveis que prejudicam pessoas doentes. Uma metáfora habilidosa para definir traficantes e milicianos que se aproveitam da vulnerabilidade gerada pela pobreza extrema para criar um poder paralelo.
Em contraste ao ambiente violento, o bucolismo do local é um dos aspectos mais marcantes. Os cenários naturais dentro do bairro Santa Teresa, como a cachoeira e a floresta que circunda as comunidades, são mostrados como verdadeiros refúgios para os personagens. Mais do que um lugar de contemplação, é um templo onde ocorrem mudanças interiores significativas em momentos de conflito, como a conversão de Reimoso de um sujeito tranquilo e sedutor para um matador violento e a desvirginação de Manuela. O verde da natureza também é um símbolo de esperança que cerca uma terra manchada de sangue.
Após a leitura do romance, descobri que Dau Bastos é alagoano e vive há algum tempo no Rio de Janeiro, onde leciona Literatura Brasileira. Isso explica o conhecimento geopolítico e econômico sobre o estado nordestino, bem como a realidade social periclitante da capital fluminense narrados no livro. A lembrança de que o governo Sarney foi particularmente destruidor para as usinas de álcool do Nordeste e seus milhares de empregados é algo que não se pode esperar de escritores do eixo Sul-Sudeste. Mesmo minúsculo em área, Alagoas é o estado com a maior área plantada de cana-de-açúcar da região. Conhecer um personagem que teve origem nesse contexto é fascinante.
Na hora de comprar, não se deixe enganar pela sinopse sexy e cheia de promessas de ação, tiroteios e demonstrações visuais de barbárie. Infelizmente Dau Bastos, um escritor inteligente, talentoso e com trinta anos de carreira na área literária, foi vítima da necessidade desesperada de vender imposta pela indústria editorial. Uma sinopse equivocada é capaz de destruir a experiência do leitor. Reima exige uma leitura calma e reflexiva, pouco a pouco, um avanço lento e paulatino, porém contínuo e inexorável. Entornar bocados do romance de uma só vez pode levar ao abandono prematuro da leitura pela falta de paciência ou perda da mensagem contida nas entrelinhas. Ler duas páginas por dia tem o mesmo efeito. Reima não é filme, é um seriado com 12 temporadas.